Sobre um livro achado no lixo

Não tínhamos livros em casa. Nem revistas. Nem jornais. Essas coisas eram um luxo distante do nosso dia a dia. Não só porque não era prioridade, como também porque não tínhamos noção, como eu descobriria só muito mais tarde com Paulo Freire, de que a leitura da vida precede e se complementa com a leitura da palavra. Afinal, pai tinha partido pouco tempo depois dos meus sete anos e, entre matar nossa fome de comida e nossa fome de leitura, Mãe não hesitava em abraçar a primeira causa, porque a fome de comida não podia esperar. Para isso, Mãe operava um verdadeiro milagre econômico com seu salário-mínimo para manter vivos oito rebentos, sem contar com alguns agregados que se alternavam sob o nosso teto de zinco.

     Naquelas alturas, eu já arriscava a juntar letras e sílabas para transformá-las em palavras e delas extrair a deslumbrante descoberta de que as coisas tinham nomes e de que esses nomes tinham a proeza de me levar a muitos outros mundos muito além daquele minúsculo mundo onde eu vivia. Isso, graças à determinação de Mãe, minha primeira professora. Todos os dias pela manhã, enquanto Mãe operava sua incansável máquina de costura para gerar uns extras no orçamento, lá estava eu ao seu lado, acomodado a contragosto em um banquinho de madeira. Era ali que Mãe se esforçava para me fazer acreditar que o A era de avião (o que me fazia lembrar os catalinas, imensos aviões anfíbios que causavam o maior rebuliço nas águas do Rio Negro), que o E era de elefante (mesmo nunca eu tendo visto na vida um elefante), que o I era de igreja (o que me conduzia ao dissabor de ser levado à missa dos domingos por Mãe), que o O era de ovo (coisa que eu associava muito bem à fome) e que o U era de uva (coisa que eu associava sempre à pitomba, essa sim, pertencente ao meu pequeno mundo dos verdes quintais do bairro).

     Houve um tempo em que descobri que, graças as aulas diárias que eu recebia de Mãe, ao som do monocórdico pedal da velha máquina Singer, eu acabava por levar alguma vantagem na escola. Durante as aulas de dona Suzete, nas barulhentas salas do Grupo Escolar Olavo Bilac, enquanto meus colegas ainda titubeavam em somar as letras e as sílabas, eu erguia o braço e, carregando uma ponta de orgulho no rosto, me adiantava em transformar as letras e sílabas em palavras, mesmo em muitos casos sem saber o que as palavras diziam. Dona Suzete deixava deslizar pelo canto dos lábios um discreto sorriso de elogio dirigido a mim, fato que em geral despertava olhares de inveja de alguns poucos colegas de famílias que moravam em casas de alvenaria: não admitiam que quem vivesse em casas de madeira à beira do igarapé pudesse juntar letras e sílabas e operar a magia de dar vida às palavras.

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     Foi então que, certa vez, um acontecimento aparentemente trivial ganhou lugar em minha memória de menino e achou por bem se alojar como lembrança sempre viva em minha memória de adulto. Era um daqueles preguiçosos finais de tarde de domingo. Voltávamos, eu e meus pareceiros, das últimas peraltices do dia no igarapé de São Raimundo. Ao passarmos diante de uma casa de alvenaria de dois andares na rua Beira-mar, observei que alguns cachorros de rua tinham derrubado uma lata de lixo na calçada, certamente à cata de restos de comida. Mas não foi isso que me despertou atenção. Cachorros vira-latas não faltavam no bairro. Chamou-me atenção mesmo foi um objeto que os cachorros afastavam com as patas em meio ao lixo esparramado no chão. Deixei os colegas seguirem em frente e atirei uma pedra na lata de lixo vazia, para afugentar os animais, que se afastaram a contragosto dos restos de comida.

      Era um livro! Retirei-o do meio do lixo com os cuidados de quem acaba de salvar um náufrago. Com as costas da mão direita, livrei-o cuidadosamente da sujeira, preocupado em não o machucar. Era um livro de capa dura com cores esmaecidas pelo tempo e pelo abandono. Mostrava o retrato de um menino branco de olhos azuis, esbanjando um sorriso de pura felicidade. Vestia um impecável uniforme escolar com calça curta na cor azul e suspensórios sobre uma camisa branca bem engomada. Nas costas, quatro ou cinco livros presos por um cinturão que passava sobre o seu ombro e era seguro por sua mão direita. Feliz com o resgate daquela preciosidade, segurei o livro com as duas mãos, iniciei o trabalho de soma das letras em sílabas e, recalcitrante, soletrei as sílabas que resultaram em duas palavras. O livro chamava-se ‘Minha infância’.

     Enquanto os colegas sumiam no final da rua, acomodei o livro contra o peito e busquei abrigo sob a marquise do sobrado amarelo onde funcionava o serviço dos correios. Com a curiosidade a cutucar minha imaginação, sentei-me em um batente e me entreguei ao enorme esforço de decifrar os textos curtinhos que formavam os primeiros capítulos do livro. Cada um desses textos era ilustrado no alto de cada página por diferentes momentos do dia a dia do menino da capa, que se chamava Paulo. Em todas as ilustrações, lembro-me muito bem, o menino estava feliz da vida, cercado pela família, todos esbanjavam sorrisos em ambientes que desafiavam minha imaginação e projetavam um mundo distante que minha meninice desconhecia.

       Guardei aquele livro com zelo e cuidado como se fosse um raro tesouro. E, até onde a memória alcança, ele foi o primeiro e por muito tempo meu único companheiro de leitura. Foi em suas páginas que me entreguei à corajosa aventura de alçar meus primeiros voos rumo ao mundo misterioso das palavras, depois da necessária aprendizagem das primeiras letras na bancada da máquina Singer de Mãe e nas aulas de dona Suzete.

     Mas foi só bem depois, com o passar do tempo, que me vi tocado por uma descoberta que passaria a nortear minha compreensão do mundo.  Foi de tanto reprisar as leituras e empreender as mais variadas decodificações daqueles textos e de suas ilustrações e cotejá-las com a realidade do bairro onde vivíamos, que meu entusiasmo de menino-leitor se transformou em frustração, e minha frustração se transformou em aprendizagem: o mundo maravilhoso de Paulo e de sua família, os personagens daquele livro, nada tinha a ver com o meu mundo e com o mundo de meus colegas do bairro, mas a leitura tinha sido um passo decisivo para eu ganhar consciência de que, no fundo, a vida é um palco de contradições e desigualdades. É claro que, com o universo linguístico limitado de menino, eu não conseguia à época traduzir em palavras aquelas sensações que me invadiam. De qualquer modo, foi ali, com aquele livro recuperado da lata de lixo, que começou minha história de leitor. 

Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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