Um monstro chamado Brasil

Foi bem casual. Tinha resgatado, dentre os poucos livros que me acompanham, uma edição de 1969 de “O Anjo bêbado”, de Paulo Mendes Campos. Sou fã de carteirinha de suas crônicas desde essa época, quando eu carregava nos ombros apenas meus dezoito anos e, acreditem, era bancário, de camisa de punho, gravata e tudo, em meu primeiro emprego com carteira assinada.

E por que resgatei minha empoeirada edição de “O anjo bêbado”? Deu-se que eu tinha devorado em pouquíssimo tempo um outro livro de leitura saborosa, lançado recentemente e chamado “Os sabiás da crônica”, que reúne textos memoráveis de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Sérgio Porto, José Carlos Oliveira e do próprio Paulo Mendes Campos. Essa turma afinadíssima na boemia e na sensibilidade do olhar foi que, nos dizeres do professor Augusto Massi, organizador da obra, fez com que a crônica se libertasse dos espaços nos jornais e passasse a morar no coração dos livros, como um gênero literário consagrado.

Pois bem, daí eu tive uma súbita, mas não surpreendente recaída de ir ao encontro de “O anjo bêbado”, que eu já nem me lembrava quando tinha lido. Seguindo uma de minhas velhas manias de leitor, reli a primeira crônica do livro e fui sacudido pela emoção. Paulo Mendes Campos discorre, numa linguagem pontuada pela ternura e pela saudade, sobre a partida do amigo Sérgio Porto, que todos conhecemos por Stanislaw Ponte Preta e pela memorável personagem que ele imortalizou chamada Tia Zulmira. Depois, como sempre faço quando se trata de livro de crônicas, que não tem compromisso com a sequência, abri aleatoriamente e me vi ancorado na página 137, numa crônica em que Paulo Mendes começa fazendo uma curiosa reflexão sobre a juventude e a velhice: “A juventude é estranha porque é a velhice do mundo passada indefinidamente a limpo”. Mas logo adiante, o cronista dá uma enviesada no tema e eu me deparo com o seguinte trecho:

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“Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cérebro funcionasse bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada, a outra perfeita; o estômago em ótimas condições, o intestino carcomido de vermes… Esse monstro é o Brasil: falta-lhe alarmantemente o mínimo de uniformidade social”.

Li e reli a metáfora desse monstro dilacerado chamado Brasil e me lembrei de que, pelo ano de publicação do livro, 1969, Paulo Mendes Campos tinha escrito essa crônica num período que antecedia os mais cruéis momentos da ditadura militar que reinava no País desde 1964. No ano seguinte à publicação do livro, 1970, sob o lema nefasto de “Pra frente Brasil”, enquanto o mais sanguinário dos ditadores, um general de nome Garrastazu Médici, deixava-se fotografar pela mídia com cara angelical ouvindo os jogos da seleção brasileira em um radinho a pilha colado ao ouvido, os porões da ditadura trabalhavam sem descanso, torturando, matando e se desfazendo dos corpos em valas comuns. Paulo Mendes Campos nasceu em 1922 e faleceu em 1991. E eu fiquei aqui e agora a pensar que o cronista jamais imaginaria que aquele monstro carcomido pelas doenças chamado Brasil, por ele tão bem metaforizado em suas deformidades agonizantes, voltaria a assombrar o País no início da terceira década do século seguinte. Com militares e métodos operacionais diferentes, é certo, mas sem deixar de ser o mesmo monstro, sem o mínimo de uniformidade social. E isso, quanta coincidência, no ano do centenário de aniversário do grande cronista.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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