Agronegócio quer ‘passar trator’ em terras indígenas

Indígenas foram os que mais sofreram por violência no campo, diz relatório (Foto: Joedson Alves / Agência Brasil – 30/05/2023)
Ademir Ramos – Especial para a Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS – No Brasil, o latifúndio, a escravidão e suas oligarquias são algumas das principais razões do nosso atraso. A disputa para definir o Direito envolvido na tese do Marco Temporal, em julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), transformou-se em um verdadeiro “cabo de guerra,” impulsionado pela bancada do boi e do agronegócio no Congresso Nacional, em colaboração com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, contra os Direitos dos Povos Originários e, por extensão, a proteção dos ecossistemas que estão sob a responsabilidade desses povos.

O julgamento no STF começou em 26 de julho de 2021, mas o protocolo do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – Santa Catarina, data de 14 de dezembro de 2016.

Até o momento, votaram contra a tese do Marco Temporal os ministros Luiz Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. Votaram a favor do Marco Temporal os ministros Nunes Marques e André Mendonça, ambos nomeados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

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No dia 20 de setembro deste ano de 2023, o julgamento volta à pauta depois da última sessão que tratou do assunto, em 31 de agosto, quando foi suspenso devido à latência das horas. A decisão do RE- 1.017.365 tem repercussão geral e deve ser seguida em situações semelhantes em todo o território nacional.

O cerne da questão é o avanço das práticas oligárquicas do agronegócio, madeireiros, mineradoras, petrolíferas, grileiros, garimpeiros e outros agentes contra os “direitos de posse (das terras indígenas) das comunidades indígenas”, como bem sintetizado pelo ministro relator.

Para o ministro Edson Fachin, relator da matéria, trata-se de uma questão constitucional de relevância ímpar à adequada compreensão dos direitos possessórios das comunidades indígenas, a reclamar desta Corte que desvele as potencialidades hermenêuticas contidas no artigo 231 do texto constitucional, de modo a tutelar o direito fundamental dos índios ao exercício de seu modo de vida, cultura e existência, intimamente ligados à posse tradicional de suas terras.

As teses em debate na Suprema Corte pode parecer sui generis para os incautos. No entanto, historicamente, tem estreita relação com as práticas escravocratas que capturavam o Estado para satisfazer seus interesses, promovendo a emancipação dos escravos de forma lenta e gradual feito a partir da Lei Eusébio de Queirós (1850) até a Lei Áurea (1888).

Nesse ínterim, sob pressão do liberalismo inglês, a estratégia dos escravocratas era se libertar dos escravos que passaram a representar um peso morto ao senhoril da Casa Grande e para realização desse plano macabro aprovaram a Lei do Ventre Livre (1871) – libertando as crianças no útero – a mesmo trama fizeram com os estropiados pela barbárie do regime de escravidão, instituindo a Lei dos Sexagenários (1885). Tudo foi consumado, assegurando as oligarquias o pleno domínio e controle de suas propriedades, como ficou lavrado na Lei de Terras de nº 601/1850 e mais tarde na exaltação da Lei Áurea, representando a exclusão das terras e o abandono social do povo negro do Brasil.

Vamos às análises das teses em debate no plenário do STF. O Indigenato defendido pelo relator do processo e demais ministros que o seguem resulta do enfrentamento contra a redução dos povos indígenas ao regime de escravidão como queria a Coroa Portuguesa, visando o esbulho das terras originárias desses povos. Para dar sustentação e reconhecimento a tese do instituto do Indigenato, o relator recorre ao Alvará Régio de 1680, assegurando a posse e domínio sobre as terras dos gentios, como eram qualificados os povos indígenas.

Não obstante, o relator ajusta sua decisão nos termos do julgamento da Petição nº 3.388 (Raposa Terra Serra do Sol, Roraima, 2013), referindo-se aos Direitos Originários das terras que tradicionalmente ocupavam e ocupam esses povos, os quais foram constitucionalmente “reconhecidos” e não simplesmente outorgados (…). Essa é a razão pela qual a Carta Magna os chamou de “originários”, expressando um direito mais antigo do que qualquer outro, de forma a prevalecer sobre supostos direitos adquiridos, mesmo quando registrados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Tais atos, por sua vez, foram declarados como “nulos e extintos” pela própria Constituição (§ 6º do art. 231 da CF).

Dessa feita, a relatoria depreende do próprio texto constitucional que os direitos territoriais originários dos povos indígenas tem reconhecimento histórico e preexistem à promulgação da Constituição e da própria fundação do Estado nacional.

Mais ainda, a Constituição de 1988, em seu Art. 232 contrapondo-se a visão integracionista, similar a emancipação dos escravos, tem por fim acelerar a inserção dos indígenas na sociedade nacional, expropriados de suas terras, culturas e organizações. Ao contrário dessa política integracionista, a nossa Carta Maior assegura a autonomia e reconhece que: “Os indígenas, suas comunidades e organizações são partes legitimas para ingressar com juízo em defesa de seus e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

O Marco Temporal defendido publicamente pelo Governo Bolsonaro, contrariando o mandamento disposto no artigo 231 do texto constitucional sobre as “terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” orienta-se por uma visão integracionista, ignorando os povos isolados, a diversidade cultural, sua autonomia e o pluralismo do pensar, ser e agir focado no esbulho das terras desses povos.

Os defensores do Marco Temporal pautam-se na decisão decorrente das análises da Pet nº 3.388, que possibilitou a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil requer a edição de súmula vinculante a partir do texto do Enunciado 650 da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, aprovado na Sessão Plenária de 24.9.2003, assim dispõe: “Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.”

Nesse sentido, a Confederação defende que a expressão “ocupação em passado remoto”, constante da Súmula 650, deva ser entendida, para efeito dos Arts. 20, XI, e 231, § 1º, da Constituição Federal, como toda presença indígena em determinada terra não mais verificada em 5 de outubro de 1988. Sustenta, por isso mesmo, que “o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área na data da promulgação (da Constituição) de 1988”.

Os atores e autores da tese do Indigenato, ao contrário, defendem que os direitos das comunidades indígenas são direitos fundamentais a garantir a manutenção das condições de existência e vida digna aos indígenas.

Os prepostos do Marco Temporal, por conveniência e interesse de mercado querem na forma da lei determinar no tempo e espaço o direito dos povos originários, reduzindo sua história a uma etnografia eventual, deslegitimando suas terras tradicionalmente ocupadas e reconhecendo tão-somente seu direito apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988.

A derrocada da tese do Marco Temporal no STF pode parecer apenas um simples gesto simbólico, mas, se juntarmos as peças no curso da nossa história, veremos que representa posicionamento firme contra o esbulho e a rapinagem perpetrados por aqueles que até hoje buscam detonar a Reforma Agrária que consiste na “desapropriação por interesse social”.

O voto do relator é pelo provimento do Recurso Extraordinário com anulação da decisão recorrida. Ademais, o ministro Edson Fachin fixa em sua decisão, entre outras teses, a proteção constitucional aos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
Sigamos, portanto, o relator contra o Marco Temporal para barrar os tratores e a boiada do agronegócio nas terras indígenas e na redução da Amazônia em pasto, acelerando mais ainda as mudanças climáticas.

(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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