Braille nas escolas: o poder da inclusão para a educação de pessoas com deficiência visual

O Sistema Braille, criado há cerca de 200 anos e implementado no Brasil há mais de 170, é uma importante política pública incluída no Atendimento Educacional Especializado (Reprodução)
Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Matheus Eduardo, aos 14 anos, impressiona pelo talento com a música. Ele canta, toca violão, carron e outros instrumentos. Talento apreciado em apresentações escolares e nos bares da cidade de Vilhena, no interior de Rondônia. A inspiração vem de ícones como os cantores Ray Charles, Stevie Wonder e Andrea Bocelli. Todos eles têm algo em comum com Matheus: a cegueira. 

O adolescente é um dos alunos cegos da rede municipal de Vilhena, cidade localizada a mais de 700 quilômetros da capital Porto Velho, que encontraram novos caminhos com o projeto musical idealizado pelo professor e cuidador de alunos, Nill Cruz. Mas antes disso tudo, os primeiros passos, dados logo no início da vida escolar, foram fundamentais: a alfabetização inteira em braille.

Matheus Eduardo, estudante com deficiência visual, vence as limitações por meio do braille e da música (Nill Cruz/Acervo Pessoal)

O sistema braille, criado há cerca de 200 anos e implementado no Brasil há mais de 170, é uma importante política pública incluída no Atendimento Educacional Especializado (AEE), instituído pelo Ministério da Educação (MEC) para o desenvolvimento de estudantes com deficiência visual.

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“Se não existisse esse trabalho do AEE dentro das instituições, eu não sei o que seria desses alunos e da própria escola. É necessário tê-los, por conta da inclusão social”, avalia Cruz em entrevista à REVISTA CENARIUM.

Professor, escritor, poeta e cuidador de alunos, Nill Cruz aposta na música aliada ao braille para o desenvolvimento pessoal e educacional de estudantes com deficiência visual (Maison Bertoncello/REVISTA CENARIUM)

Política pública

Para a gerente de AEE da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Vilhena, Cleide Camargo, o ensino de braille nas escolas “é uma emancipação para a criança”.

“A sala do AEE, com relação ao braille, é tirar a criança de um nível para o próximo nível. É tirar ela do limbo, de casa, do achar que não pode para o poder”, diz a especialista à CENARIUM.

Atualmente, das 29 escolas municipais de Vilhena, 24 contam com salas de Atendimento Educacional Especializado, contemplando alunos cegos, autistas, com paralisia cerebral e outras deficiências. São quase 500 crianças atendidas, sendo que 180 delas têm cuidadores à disposição para as atividades do dia a dia escolar.

Apesar de uma eficiente política de inclusão, a educadora, com quase 30 anos de experiência, alerta que este não é um serviço obrigatório, mas, sim, uma oferta. As aulas de AEE tem duração de duas horas e são oferecidas uma vez por semana, em contraturno. Por isso, ela defende que a consciência deve nascer em casa, com a decisão dos pais de permitir o acesso às crianças. É uma janela, segundo ela, para a superação das limitações impostas por qualquer deficiência.

Educadora há 29 anos e gerente de AEE, em Vilhena, Cleide Camargo defende o atendimento especializado como superação das limitações de todo tipo de deficiência (Maison Bertoncello/CENARIUM)

“Quando a mãe consegue ver as vantagens, as crianças escrevendo, passando os dedinhos no livro braille (…) algumas mães acreditam. E a gente vai fazendo esse trabalho, de mostrar como é possível, como o menino cresce e aí a mãe se convence”, explica a gerente de AEE. 

“Cada escola conta com dois professores de AEE. O Colégio Almirante Tamandaré, por conta deste núcleo de crianças com deficiência visual, tem quatro professores de atendimento especializado: dois são, especificamente, para as crianças cegas e os outros dois para as outras deficiências. Então, é lá onde há o polo para as crianças com deficiência visual”, detalha ainda a gestora.

Inclusão

As escolas são equipadas com livros didáticos e literários, todos em braille. Também contam com regletes – um dos primeiros instrumentos criados para a escrita nesta modalidade. Camargo também conta que uma máquina e uma impressora braille já foram cotadas pela prefeitura para instalação em outra instituição, que se prepara, agora, para receber um aluno com cegueira, matriculado na educação infantil.

“Há, realmente, um suporte muito grande para essas crianças, no município (…) o AAE agrega valores para os filhos e também para os pais”, ressalta Cleide Camargo.

Técnica da escrita em braille foi criada há mais de 200 anos e foi, oficialmente, adotado no Brasil em 1854 (Maison Bertoncello/CENARIUM)

Desenvolvimento pessoal

Desenvolvido por Nill Cruz, o projeto musical implementado com os estudantes com deficiência visual é um“transbordo” de seu trabalho como cuidador, como classifica a gerente de AEE, Cleide Camargo. Vai além da obrigação das duas horas semanais. Ele faz isso pelo gosto de ver os crescimentos dos alunos e por uma satisfação pessoal de contribuir com algo maior.

“Isso se tornou minha base, um objetivo. Vejo como o Matheus fica bem no palco, tão à vontade. Ele descobriu que aquilo é a vida dele. E eu percebi que eu tinha uma obrigação, um alvo a atingir. Isso ajudou até na minha própria autoestima”, declara emocionado.

“Perdi uma irmã e fiquei muito mal. E esses meninos me mantêm firme no projeto, no trabalho, então, eu os vejo, também, como uma sustentação. Eles aprendem comigo e, ao mesmo tempo, me ensinam muito”, acrescenta o cuidador e professor de música.

No vídeo acima, Marciel, outro aluno com deficiência visual atendido por Nill Cruz, toca violão (Nill Cruz/Acervo Pessoal)

Muito a avançar

Apesar de um cenário de exemplo, no município de Vilhena, outras cidades de Rondônia ainda têm muito a avançar em políticas de inclusão, bem como a gestão educacional ligada ao governo do Estado. Metas lembradas e muito mais discutidas neste 4 de janeiro, Dia Mundial do Braille.

Exemplo disso é que Matheus se prepara para cursar o último ano do ensino fundamental em uma escola na rede oferecida pelo município. Em 2024, ano seguinte, ele deve ser transferido para alguma instituição estadual para iniciar o ensino médio, motivo de preocupação para Cleide Camargo. Ela enfatiza a importância de que, não só a prefeitura garanta a inclusão, mas também o governo de Rondônia. 

“Eles [os alunos] ficam meio órfãos, porque eles têm esse tratamento no município e se precisam ir para o Estado, deve haver uma congruência entre as duas esferas, no tratamento dessas crianças, uma continuidade”, sugere a educadora. 

“Como será esse processo dele, lá, no primeiro, segundo e terceiro ano do colegial? Se não houver um cuidador, ele vai ficar sozinho. O recreio não vai parar para ele. Então, essa política, não só a política externa, mas a de dentro da escola, precisa ver esse aluno como um cidadão, como um estudante da instituição. Ele precisa ser cuidado e não existe cuidador no Estado. Isso é uma política do município, ainda”, concluiu Camargo.

De acordo com o censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até 2010, o País tinha mais de meio milhão de pessoas com deficiência visual e 6,5 milhões de pessoas com algum grau da deficiência. Mesmo assim, apenas 1% dos livros são transcritos em braille no Brasil.

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