Chamado de alerta da Amazônia: um epicentro potencial para próxima pandemia

Imagem aérea feita em setembro de 2021 mostra desmatamento em Lábrea, no Amazonas (Victor Moriyama/Amazônia em Chama/Divulgação Greenpace)
Monica Piccinini – Especial para Revista Cenarium**

MANAUS – Preservar a floresta amazônica não é apenas uma preocupação ambiental; é uma questão de sobrevivência. É o local com maior biodiversidade do planeta, um reservatório de medicamentos que salvam vidas e um regulador crítico do clima do nosso planeta. A nossa saúde, a nossa sobrevivência e o equilíbrio do nosso mundo dependem da sua protecção.

O ecossistema diversificado da Amazônia está ameaçado pela desflorestação desenfreada, pela degradação e pelas alterações climáticas, comprometendo a sua capacidade de funcionar como sumidouro de carbono. Essa degradação aumenta a probabilidade de surgimento e propagação de doenças zoonóticas, representando um risco significativo para a saúde pública do Brasil e do mundo.

Leia também: Ameaça silenciosa nos céus: ‘Síndrome Aerotóxica’
Desmatamento em Rondônia. (Everton Pimentel/Ibama)

As mudanças climáticas, o desmatamento, as alterações no uso da terra, a expansão agrícola, a pecuária, as atividades de mineração, a perda de biodiversidade, a urbanização, a extração de petróleo e gás e o desenvolvimento de infraestrutura em grande escala, como a construção de estradas e barragens na floresta amazônica, estão todos associados ao surgimento e disseminação de doenças infecciosas. Estes incluem dengue, febre amarela, malária, vírus Zika, febre Chikungunya, Candida auris, leishmaniose, vírus Oropouche, hantavírus e muitos outros, com a possibilidade de também introduzir novos patógenos.
Leia artigo aqui.

PUBLICIDADE

Em 2023, o Brasil registrou 1.079 mortes por dengue, um aumento de 20,9% em relação ao ano anterior. Segundo o Ministério da Saúde, entre 1º e 30 de janeiro, o país notificou mais de 217 mil casos, marcando um aumento significativo de 233% em relação ao mesmo período de 2023, quando houve pouco mais de 65 mil casos.

Área desmatada na Amazônia (Reprodução/Kathas Fotos/Pixabay)

Em 2024, o Brasil registrou aproximadamente 408.351 casos potenciais de dengue, conforme dados do Painel de Monitoramento de Arboviroses do Ministério da Saúde.

Segundo relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2023, o país registrou cerca de 2,9 milhões de casos suspeitos de dengue. Este aumento significativo nos casos de dengue pode ser atribuído a fatores como o fenômeno El Niño, o desmatamento e o impacto das alterações climáticas, que podem levar a eventos climáticos mais frequentes e severos.

O mosquito Aedes aegypti é o vetor transmissor de doenças como os vírus da dengue, da febre amarela, do Zika e da Chikungunya.

A Fundação de Vigilância Sanitária (FVS) do Brasil informou recentemente que uma nova cepa do vírus Oropouche foi responsável por surtos na região da Amazônia brasileira nos últimos dois anos. Somente no estado do Amazonas, foram registrados 1.066 casos do vírus entre 2023 e 2024. Leia o artigo completo.

A febre Oropouche é causada por um arbovírus transmitido pela picada de um mosquito chamado Culicoides paraense, comumente conhecido como maruim.

Com aumento da temperatura e maior incidência de eventos climáticos extremos, doenças como AVC, esquistossomose, malária e dengue devem aumentar no Brasil (Divulgação)
O Maior Reservatório de Biodiversidade do Planeta

A floresta amazônica é reconhecida como um dos maiores reservatórios de doenças zoonóticas, que podem ser transmitidas de animais para humanos. Muitos cientistas alertaram consistentemente sobre os desequilíbrios ambientais ligados à crescente prevalência de doenças infecciosas e chamaram a atenção para o risco iminente de um agente mortal patogênico emergir da Floresta amazônica. Leia o artigo.

A interação entre humanos e espécies selvagens, juntamente com os seus agentes patogénicos, cria oportunidades para o surgimento de doenças zoonóticas, facilitando a transmissão de novos agentes patogênicos através de várias espécies hospedeiras, um fenômeno conhecido como “spillover”, que leva à introdução de novas infecções no população humana.

Para que ocorram eventos de “spillover”, deve haver interação entre espécies diferentes e condições favoráveis ​​para que os patógenos se espalhem entre os humanos. Um exemplo é a transmissão de doenças transmitidas por morcegos, como a raiva, na floresta amazônica. Isto está frequentemente associado a fatores como o desmatamento, a expansão agrícola e a presença de gado, que aumentam o contato entre estes animais e os humanos, facilitando a transmissão de infecções.

Vários tipos de animais, incluindo macacos, morcegos e mosquitos, podem servir como portadores ou vetores de doenças infecciosas para os humanos, pois transportam patógenos como vírus, bactérias, fungos, parasitas e príons. A transmissão desses patógenos aos seres humanos pode ocorrer através do contato direto com esses animais ou através da água, dos alimentos ou do ambiente circundante.

Sars, Ebola, Hendra e Nipah são exemplos de patógenos de morcegos que desencadearam surtos na população humana.

As Alterações Climáticas

Joel Henrique Ellwanger, biólogo e pesquisador do departamento de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mencionou:

“As mudanças climáticas desencadearão mudanças ecológicas importantes na Amazônia, muitas delas com potencial de reduzir sua biodiversidade, facilitando a propagação de vetores de doenças conhecidos e aumentando as chances de surgimento de novas doenças.”

O impacto das alterações climáticas e do desmatamento está causando um aumento de fenômenos meteorológicos extremos e o aumento das temperaturas. Essas condições estão impactando a quantidade de vetores, os padrões de transmissão e as interações interespécies, impulsionando a disseminação de doenças infecciosas em toda a região amazônica e em todo o Brasil.

Secas severas na floresta amazônica podem criar condições para a propagação de diversas doenças, como a dengue. Durante os períodos de chuvas limitadas, os moradores muitas vezes recorrem ao armazenamento de água em tanques, criando consequentemente criadouros de mosquitos.

“Por exemplo, à medida que as temperaturas sobem, os mosquitos tornam-se mais ativos e reproduzem-se a uma taxa mais elevada. Além disso, as mudanças no clima podem fazer com que animais portadores de patógenos migrem para áreas onde residem humanos”, disse Ellwanger.

O aumento de casos de Candida auris, um fungo resistente a múltiplos medicamentos associados a infecções hospitalares, pode ser causado por temperaturas mais elevadas resultantes das alterações climáticas. Este patógeno afeta pacientes gravemente doentes, incluindo adultos e crianças, que recebem cuidados intensivos em hospitais em todo o mundo.

Ellwanger explicou como as alterações climáticas podem ter desempenhado um papel no aumento do Candida auris:

“As mudanças climáticas podem influenciar a evolução dos patógenos. Certos microrganismos, antes incapazes de infectar os seres humanos porque estavam habituados a temperaturas mais baixas, estão agora se adaptando a condições mais quentes que imitam o calor do corpo humano. Esta adaptação cria o potencial para que estes microrganismos, normalmente presentes no solo e em ambientes semelhantes, infectem humanos e causem doenças. Acredita-se que este fenômeno tenha acontecido com o Candida auris.

Desmatamento e Urbanização

Estudos sugerem que o desmatamento, a perda de biodiversidade e a degradação do habitat criam caminhos para a transição dos agentes de doenças do reservatório diversificado de vários coronavírus e agentes patogénicos na região para a população humana. O Sistema vulnerável de saúde pública da Amazônia complica ainda mais a detecção e contenção de qualquer pandemia emergente na região.

Ao explorar a emergência de epidemias, a urbanização torna-se outro fator crítico a considerar. Contribui para o esgotamento das áreas florestais, aumentando consequentemente o risco de doenças infecciosas em regiões como a floresta amazônica. O surto de infecção pelo vírus Zika no Brasil tem sido associado à urbanização e à perda de terras florestadas. Leia o artigo completo.

Projetos de Infraestrutura

A construção de estradas na floresta amazônica contribui para o desmatamento, os incêndios florestais, o declínio da biodiversidade, o aumento das atividades de caça e a migração humana, impactando diretamente a dinâmica das doenças infecciosas.

Entre 1970 e 1973, a construção da rodovia Transamazônica, conhecida como BR-230, levou ao afluxo de cerca de 22 mil pessoas à região. Esses indivíduos encontraram vetores de doenças, expondo-os a diversas doenças, como malária, leptospirose, leishmaniose, doença de Chagas, febre de Mayaro, febre amarela e muitas outras.

Um estudo publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities alerta que a reconstrução da rodovia BR-319 da Amazônia pode resultar em efeitos ambientais devastadores, incluindo um risco aumentado de repercussões zoonóticas, potencialmente levando a novas pandemias.

A rodovia BR-319 tem 885,9 km de extensão e liga a capital central da Amazônia, Manaus, ao limite sul da floresta em Porto Velho, atravessando um dos blocos mais preservados da floresta. O desmatamento ao longo da porção central da BR-319 já resultou em um aumento de 400% nos casos de malária.

Um estudo recente publicado na Nature alerta que as iniciativas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para construir estradas e prosseguir com a exploração de petróleo na região amazônica podem potencialmente desencadear uma nova pandemia mundial.

A construção de hidrelétricas na floresta amazônica também levanta grande preocupação. Um exemplo é o complexo hidrelétrico de Belo Monte, localizado na região norte do rio Xingu, no estado do Pará. Este projeto mudou significativamente a paisagem da Amazônia brasileira, inundando uma área de aproximadamente 516 km2.

As inundações de regiões secas dentro da floresta tropical levam à perda de biodiversidade e criam habitats adequados para vetores de doenças como os mosquitos, intensificando assim a proliferação de doenças virais e parasitárias.

As barragens podem levar ao deslocamento de comunidades e à migração de populações atraídas para regiões florestais, aumentando potencialmente as interacções homem-fauna selvagem e a transmissão de doenças infecciosas.

A implementação dos projetos propostos na floresta amazônica, incluindo a reconstrução da rodovia BR-319 e a exploração de petróleo, poderia resultar em consequências catastróficas e irreversíveis, incluindo o aumento e disseminação de doenças infecciosas, devido à degradação ambiental na região.

Agricultura e Pecuária

“A carne conecta diferentes pontos que envolvem a degradação da Amazônia e doenças emergentes. A pecuária é um dos principais fatores de degradação do bioma amazônico, facilitando a disseminação de patógenos na região. A caça e o consumo de carne de animais selvagens são um problema tanto para a conservação das espécies como para a saúde pública, uma vez que reduzem a biodiversidade animal e aumentam as probabilidades de eventos de repercussão. Lamentavelmente, esta questão permanece amplamente negligenciada e é muitas vezes considerada um tabu no Brasil”, explicou Ellwanger.

Estudos sugerem que a intensificação da agricultura e a conversão de florestas para agricultura e pastagens para gado aumentam a interação homem-patógeno, promovendo o surgimento de infecções virais, bacterianas e parasitárias.

Os profissionais da indústria da carne interagem regularmente com animais de criação e podem não ter condições de trabalho adequadas para reduzir o risco de transmissão de agentes patogênicos zoonóticos. Além disso, podem ter conhecimento limitado sobre os riscos para a saúde associados às suas atividades laborais.

Os abatedouros da região amazônica estão envolvidos no processamento de animais provenientes de áreas desmatadas e podem estar operando sem qualquer forma de fiscalização sanitária.

Outra preocupação é o uso excessivo de medicamentos antimicrobianos na prática veterinária. Os principais impulsionadores da resistência antimicrobiana (RAM) incluem o uso excessivo de antibióticos na pecuária para promover o crescimento e prevenir doenças, particularmente na pecuária intensificada.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve a RAM como uma pandemia negligenciada. Alguns dos números mais recentes sugerem que a RAM causará 10 milhões de mortes até 2050, mais do que as causadas pelo câncer, diabetes e doenças pneumocócicas juntas.

De acordo com Cóilín Nunan, consultor científico da Alliance to Save Our Antibiotics, certos tipos de antibióticos utilizados na pecuária levaram ao aumento e à propagação de cepas de MRSA e Clostidrium difficile associadas ao gado.

Cientistas da Universidade de Oxford publicaram um estudo revelando a bactéria Escherichia coli que desenvolveu resistência à colistina na pecuária. Nunan destaca isto como uma preocupação significativa, sugerindo que pode representar uma ameaça maior do que a resistência antimicrobiana (RAM), aumentando potencialmente a probabilidade de infecções em humanos.

Carne de Caça

A caça e o consumo de carne de animais selvagens também podem levar a eventos de “spillover”, à medida que os seres humanos entram em contato próximo com carne fresca, sangue e órgãos de animais infectados.

Aproximadamente 473 toneladas de carne de animais selvagens são vendidas anualmente na floresta amazônica, na Colômbia, Peru e Brasil.

É essencial reconhecer que uma proibição total do consumo de carne de animais selvagens em certas regiões poderia afetar a subsistência de milhares de pessoas que dependem desta atividade.

Medidas Essenciais

Em conversa com Ellwanger sobre as medidas essenciais necessárias para prevenir o surgimento e propagação de doenças infecciosas na floresta amazônica e evitar o início de uma nova pandemia na região, ele explicou:

“Certas medidas cruciais devem ser tomadas, incluindo a melhoria das medidas sanitárias pecuárias, o aumento da vigilância de patógenos, a modernização dos sistemas de saneamento ambiental, o desencorajamento do assentamento humano em regiões florestais, o aumento de investimentos em treinamento humano e laboratórios especializados para identificação de patógenos, a criação de novas vacinas e o exame biológico e fatores sociais que afetam a suscetibilidade à infecção.

“A perda de biodiversidade na Amazônia é causada principalmente pela pecuária, atividades de mineração e cultivo de monoculturas, especialmente soja. O combate a essas atividades é responsabilidade do Governo brasileiro, por meio do fortalecimento dos órgãos de proteção ambiental, da preservação e expansão dos territórios indígenas e do comprometimento com uma agenda ambiental séria”, acrescentou Ellwanger.

Além disso, são necessárias medidas urgentes para dar prioridade à redução das emissões de gases com efeito de estufa a nível mundial, juntamente com o combate ao desmatamento e a proteção dos territórios indígenas. É crucial reavaliar os projetos de infraestruturas e gerenciar cuidadosamente as atividades humanas na região. A suspensão da exploração de petróleo e gás na Amazônia é essencial, assim como a regulamentação da expansão da agricultura intensiva, da pecuária e dos projetos de mineração.

Ellwanger explicou que preservar a floresta amazônica deveria ser do interesse de todos:

“A preservação da Amazônia não se trata apenas de proteger a natureza – trata-se de salvaguardar a nossa própria saúde. Vamos comprometer-nos a conservar este ecossistema vital para garantir que as ameaças de potenciais agentes patogénicos permaneçam confinadas à natureza, longe de pôr em perigo vidas humanas. Afinal, a saúde da Amazônia significa a saúde de todos nós”.

(*) Monica Piccinini é escritora com foco em temas ambientais, de Saúde e de Direitos Humanos.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.