Comunidade indígena de Maturacá, no Amazonas, recebe pela primeira vez mutirão de assistência jurídica

Foi a primeira vez que a comunidade de Maturacá recebeu um mutirão de um órgão do sistema de Justiça (Evandro Seixas/DPE-AM)
Com informações da assessoria

MANAUS – A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) esteve na comunidade de Maturacá, em São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, na última semana, para realizar, pela primeira vez, um mutirão de assistência jurídica dentro da terra indígena.

“A gente fica muito feliz com a vinda da Defensoria Pública para cá porque é difícil e caro viajar daqui até São Gabriel. Às vezes, ficamos muito tempo na cidade e não conseguimos resolver nada por falta de orientação. Hoje, essa realidade começa a mudar”. A afirmação é do tuxaua Francisco Xavier, líder de uma das sete comunidades indígenas Yanomami que vivem em Maturacá, São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira com a Venezuela.

Pela primeira vez acontece um mutirão de assistência jurídica dentro da terra indígena (Evandro Seixas/DPE-AM)

Organizado em parceria com a Associação Yanonami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), o mutirão ocorreu para suprir as dificuldades de acesso à Justiça na comunidade. Devido à distância e dificuldades de comunicação, é comum encontrar na região crianças e adultos que não possuem registro de nascimento. E a falta de documentos impede o acesso a serviços básicos como saúde, educação e benefícios sociais.

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“As principais demandas deles são com relação a documentos. Muitos Yanomami não possuem certidão de nascimento e isso impede que eles tirem o RG e o CPF, por exemplo; quando alguém morre, a família não consegue ir no cartório fazer a certidão de óbito dentro do prazo e isso também traz consequências. Por isso, viemos para ouvir as demandas e tentar minimizar esses problemas”, explicou a coordenadora do Polo do Alto Rio Negro, defensora pública Isabela Sales.

Além dos pedidos de registro de nascimento tardio, casos de retificação de nome na certidão, declaração de união estável e pedidos de declaração de óbito tardio foram as principais demandas recebidas na ação. Mais de 250 atendimentos foram realizados. Parte das demandas serão encaminhadas ao Judiciário, mas alguns casos poderão ser resolvidos de forma extrajudicial.

“Foi um momento histórico para a Defensoria. Pela primeira vez, chegamos até aqui para levar acesso à Justiça e cidadania para o povo Yanomami e cumprir o propósito da DPE-AM que é o de levar assistência jurídica gratuita, integral, humanizada e culturalmente adequada para os lugares mais distantes do Amazonas”, destacou a defensora.

Intérpretes ajudaram no atendimento

Três defensoras públicas e duas analistas jurídicas realizaram os atendimentos por quase 10 horas, no ginásio da escola da comunidade. Como boa parte dos indígenas não dominam a Língua Portuguesa, a equipe contou com a ajuda de cinco intérpretes voluntários, professores da própria comunidade, que foram fundamentais para que o serviço acontecesse de forma rápida e humanizada.

Foi o caso dos Yanomami Ernesto Paixão Pena e Sofia Peixoto Campos. Após 31 anos de convivência e nove filhos, o casal aproveitou o mutirão para oficializar a união estável. “Era um desejo antigo. Quando chegar a hora de aposentar, vai ficar mais fácil”, disse ele emocionado. “Eu estava preocupada com os meus filhos que estavam correndo para lá e para cá para resolver alguns problemas de documentos. Hoje, conseguimos resolver aqui”, afirmou Sofia, na língua nativa.

O professor Bento da Silva Matos e a esposa Luzineide Ramos Moraes também aproveitaram a oportunidade para declarar a união deles, desde 2002. O casal solicitou ainda o registro tardio da filha caçula, que ainda é bebê, e de uma sobrinha adolescente que mora com eles.

“Esse momento para mim é muito importante porque consegui resolver várias situações de uma só vez, sem precisar viajar, sem precisar gastar. Eu já tinha tentado fazer isso na cidade, mas não consegui. Hoje, o nosso sentimento é de felicidade e gratidão à Defensoria”, contou.

Rodas de conversa com os jovens e as mulheres indígenas também foram realizadas para ouvir outras demandas e pensar em estratégias para propor soluções.

Momento histórico

O mutirão jurídico em Maturacá é considerado histórico não só por ter sido o primeiro voltado ao povo Yanomami, mas por servir como teste para projetos futuros. É que no local, nunca uma audiência judicial, com a presença de juiz, promotor, defensor e a parte interessada, havia sido realizada antes. Isso foi possível durante a ação, por videoconferência, mediante articulação da Defensoria com a comunidade e o poder Judiciário do município

Uma das audiências era para obter a retificação do sobrenome de uma criança Yanomami. Dos seis filhos, ela era a única que possuía o nome diferente. “Me dei conta do problema quando ela precisou ir à escola e o sistema não reconhecia o sobrenome dela. Procurei ajuda na Defensoria e agora conseguimos a autorização para mudar a certidão da minha criança”, contou o professor Bento.

“A Defensoria tem se interiorizado, mas ainda assim as distâncias geográficas são um grande impedimento para que a população tenha acesso à Justiça. Hoje, realizamos algo inédito e, pela primeira vez, pudemos participar de duas audiências pela internet, em Maturacá, dando a oportunidade para que partes interessadas fossem ouvidas pelo juiz, sem precisar do deslocamento até São Gabriel. É a internet mostrando que é possível diminuir esses caminhos”, explicou a defensora Danielle Mascarenhas.

A expectativa agora é promover treinamentos com os professores locais, a fim de que eles possam auxiliar os assistidos em outras audiências on-line. “A partir de agora, a comunidade terá a internet como ferramenta de acesso à Justiça”, salientou Mascarenhas.

Percurso

Para chegar em Maturacá, a equipe do Polo do Alto Rio Negro viajou por mais de 7 horas de carro (1 hora de estrada) e de barco, partindo da sede de São Gabriel da Cachoeira. A comunidade está situada dentro do Parque Nacional do Pico da Neblina e faz parte da Terra Indígena Yanomami (TIY). Atualmente, cerca de 2 mil pessoas vivem no local.

Considerados de recente contato, os Yanomami de Maturacá enfrentam muitas dificuldades, principalmente, quanto ao acesso à saúde, abuso de álcool e exploração ilegal do território indígena por garimpeiros.

Em julho, a defensora Isabela Sales participou da Assembleia Geral da Ayrca, para ouvir as demandas da população e intermediar soluções. A visita também fez parte dos trabalhos iniciados em junho deste ano, quando a Defensoria instaurou um Procedimento para Apuração de Dano Coletivo (Padac) a fim de investigar possíveis violações aos direitos fundamentais dos Yanomami nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.

À época, a DPE-AM identificou irregularidades em atendimentos de saúde para as comunidades, além da falta de acesso a registro civil.

“Esse trabalho foi muito importante para a nossa comunidade. Queremos continuar com a parceria com a Defensoria e que essa equipe possa voltar mais vezes para facilitar na resolução de demandas do nosso povo”, finalizou o presidente da Ayrca, José Mário Goes.

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