Conferência de Pajés do Amazonas pode ser referência para COP30

Pajé, o indígena mais experiente de um povoado indígena (Reprodução/Clóvis Chiaradia)
Ademir Ramos – Especial para Revista Cenarium**

A Carta de Manaus, declaração da primeira Conferência de Pajés do Amazonas, faz 21 anos e pode ser referência para a COP30: Conferência de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU).

Com respaldo da Organização do Tratado de Cooperação Amazônico (OTCA), o Governo do Estado, por meio da Fundação Estadual de Política Indigenista (Fepi) do Amazonas, realizou de 22 a 25 de agosto de 2002 a primeira Conferência de Pajés do Amazonas, com apoio do Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas (Inpa), Fiocruz (Instituto Leônidas e Maria Deane), Fundação Oswaldo Cruz Amazônia, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Amazonas, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

A iniciativa da Fepi, tendo à frente lideranças indígenas formuladoras de políticas públicas, tinha por objetivo discutir com os especialistas critérios de participação dos povos indígenas do Amazonas na repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, visando o controle e a proteção do Direito de Propriedade Intelectual das comunidades tradicionais e dos povos originários.

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Para esse fim, cumpriu-se a seguinte agenda: a) valorização e garantia do conhecimento tradicional, o olhar do Pajé; conhecimento tradicional e seu valor de mercado; a pesquisa científica e seus benefícios financeiros; a legalidade do direito do conhecimento tradicional; vigilância e controle sobre biodiversidade amazônica; seleção genética das plantas; política pública de biotecnologia para o Amazonas; pesquisa e transferência de tecnologia e conhecimento tradicional associado como forma de propriedade intelectual.

Os debatedores foram: professor Frederico Arruda, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam); Marcos Daniel, da Secretaria de Desenvolvimento do Interior, professor Marcus Barros, direitor do Inpa; Davi Kopenawa, pajé Yanomami; Tobias Warata, pajé Hixkariano; Marcos Terena, coordenador-geral de defesa dos direitos indígenas da Funai; Luciano Medeiros de Toledo, Fiocruz Amazônia; Jarbas Marcílio, da Associação Brasileira de Inteligência (Abin); Maximiliano Corrêa Menezes, da Foirn; José Alberto Barbosa, do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas; Benedito Rangel, administrador da Funai Manaus e Coronel Amauri, do ministério do Exército.

Manaus, sendo a capital indígena do Brasil, sediou, em 2002, um dos maiores eventos sobre o Direito dos Povos Originários focado na proteção do patrimônio histórico, cultural, genético e ambiental, amparado nos artigos 215 e 216, além do inciso II do art. 225 da Constituição Federal de 1988, bem como nas determinações da Rio-92, como foi chamada a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Brasil em 1992, no Estado do Rio de Janeiro. Da mesma forma, recorreu-se também à Carta de São Luiz do Maranhão, datada de 6 de dezembro de 2001, sobre “a Sabedoria e a Ciência do Índio e a Propriedade Industrial”.

Na oportunidade, a Rio-92 aprovou a Convenção sobre a Diversidade Biológica, que introduzia novos conceitos e normas para a conservação, utilização sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade como marco legal para balizar a luta dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. O Brasil foi o primeiro País a assinar a adesão à convenção. Sua ratificação pelo Congresso Nacional se deu em 1994.

À época, a primeira Conferência de Pajés teve ampla repercussão na mídia. A revista Scientific American Brasil, N° 5, de outubro 2002, em sua matéria de página, falava da falta de legislação específica contra a biopirataria na Amazônia e a expropriação dos conhecimentos tradicionais associados. A conceituada revista registrou a presença de “cerca de cem representantes de etnias indígenas, dentre eles 44 pajés”.

Davi Yanomami, um dos presentes na conferência, falou da importância do encontro, porque para ele, o Pajé “é como médico e tem que ser respeitado. Ele conhece os espíritos da chuva, do trovão, do relâmpago e das florestas. Quando o mundo está chorando, nós que curamos ele”.

E assim como a OTCA divulgou no dia 8 de agosto de 2023 a Declaração de Belém, balizando as discussões para a COP30, a ser realizada na Amazônia brasileira em novembro de 2025, na cidade de Belém do Pará; no Amazonas, a primeira Conferência de Pajés também divulgou a Carta de Manaus com suas exigências e afirmações, porque até o presente: “o Brasil não possui políticas e leis de proteção do conhecimento tradicional dos povos indígenas. É necessário sensibilizar a sociedade, os institutos de pesquisa, as universidades, o Estado e as próprias organizações indígenas para a elaboração de políticas públicas que visem a proteção do conhecimento tradicional associado à biodiversidade (…)”.

Etnologicamente, a Carta de Manaus faz uma conceituação do que seja o Conhecimento Tradicional Associado, considerando as seguintes determinações: “os povos indígenas, numa relação com a natureza e seu meio ambiente, acumularam, durante séculos, conhecimentos sobre a biodiversidade amazônica, estabelecendo métodos de investigação no qual observam, comparam, diferenciam, experimentam e domesticam espécies de plantas, desenvolvendo processos de classificação que lhes permite ordenar, conhecer e explicar a biodiversidade existente na região, por meio de sua tradição, mitologia e outras formas de circulação de saber”.

Faz-se oportuno o resgate dessa trajetória histórica da luta dos povos indígenas do Brasil, particularmente do Amazonas, muito antes de se pensar a COP30 para o fortalecimento das lideranças indígenas e suas organizações junto às representações no Congresso Nacional e nos Fóruns multilaterais, visando à efetivação do Direito dos Povos Originários quanto à proteção desse patrimônio socioambiental.

Sobretudo, a partir deste ano de 2023, a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da legalidade do Centro de Bionegócios da Amazônia (CBA), com sede em Manaus, tem por objetivo “transformar a grande farmácia, que é a biodiversidade amazônica, em produtos, serviços, empregos e investimentos”. Ao todo, o Governo Lula prevê investimentos de R$ 47,6 milhões ao longo dos próximos quatro anos. Somente na Superintendência da Zona Franca de Manaus, 44 novos projetos foram aprovados em abril, sob o investimento de R$ 1,6 bilhão.

A COP30, sob a direção da Organização das Nações Unidas, é para os Povos Originários uma grande oportunidade de garantia do direito de repartição do conhecimento tradicional associado à proteção dos ecossistemas tropicais.

No Brasil, os movimentos indígenas terão que participar efetivamente desse processo, seja por meio de suas organizações ou sob a direção do próprio MPI, com propósito de criar uma agenda pautada no etnodesenvolvimento, regrada pela cooperação entre as partes, de acordo com os termos da Declaração de Belém da OTCA: “adaptando-a às novas realidades regionais e globais para garantir a conservação, a proteção e a conectividade ecossistêmica e sociocultural da Amazônia, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar de suas populações, com especial atenção aos povos indígenas e às comunidades locais e tradicionais em situação de vulnerabilidade”.

Destaca-se aqui, entre outas, as exigências lavradas na Carta de Manaus, como a criação na Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam) de uma câmara específica para a proteção do conhecimento tradicional, com a participação das organizações indígenas; como também, critérios de participação das comunidades quanto à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado, caso específico do CBA e outros afins e, por último, não menos importante, a Carta de Manaus recomenda a celebração de “Projetos de Cooperação entre os países signatários da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, visando à proteção do conhecimento tradicional indígena associado à etnobiologia como valor estratégico”.

A proposta em pauta, se bem trabalhada pelo Brasil, com protagonismo da Coiab e do próprio MPI, poderá ser um ganho significativo para a conservação da Amazônia fincada na matriz do etnodesenvolvimento dos povos originários.

Editado e revisado por Adriana Gonzaga
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(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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