Constituição Federal no Nheengatu se fez com espiritualidade e ciência

Lançamento da a primeira Constituição Federal em língua Indígena no Amazonas. (Fellipe Sampaio/SCO/STF)
Ademir Ramos – Especial para Cenarium**

São Gabriel da Cachoeira, situado a noroeste do estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela às margens do Rio Negro, foi quem recepcionou a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, no dia 19 de julho de 2023, para o lançamento da primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena Nheengatu também conhecida como Língua Geral Amazônica da família tupi-guarani.

A cerimônia foi realizada na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, com a participação da ministra do STF Cármen Lúcia, da presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Nélia Caminha, da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, da presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana, dos tradutores indígenas, consultores e demais convidados.

A presença das mulheres à frente desta cerimônia de iniciativa da Suprema Corte de Justiça do Brasil, na Bacia do majestoso Rio Negro, é carregada de múltiplos significados, sobretudo, quanto ao processo de fundação e o aparecimento da natureza e das coisas numa perspectiva etnohistórica dos 23 povos formadores dessa área cultural que tem a mulher como “mito de criação” do mundo e da humanidade. Para eles, o mundo não existia. “As trevas cobriam tudo. Quando não havia nada, brotou uma mulher de si mesma. Surgiu suspensa sobre seus bancos mágicos e cobriu-se de enfeites que se transformaram em uma morada […]. Ela própria se chama Yebá bëló ou seja, avó do mundo”.

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O professor doutor em linguística, Edilson Martins, do povo Baniwa, em entrevista por telefone me dizia que ele junto com os demais tradutores, mergulharam na profunda espiritualidade para dar conta desta tradução que foi feita em três semanas aproximadamente. Sabíamos dos desafios. Mas procuramos encarar com “muita espiritualidade e conhecimento linguístico para traduzir o mais próximo da realidade todos os artigos da nossa Constituição, em respeito à grandeza de sua compreensão e sentido”.

Confesso, diz o professor, “nós não acreditamos que o estado brasileiro fosse assumir tal responsabilidade”, o fato é que dos 14 tradutores registrados na edição em Nheengatu- “Mundu sá turusú waá 1988” – seis são de São Gabriel da Cachoeira, todos professores que iniciaram esta luta no final da década de 90 quando ingressaram no Curso do Magistério Indígena com apoio da Prefeitura Municipal que arcou com todos os custos.

O simbolismo se faz ainda maior, quando a ministra afirma que não falará como Rosa Weber, mas como Raminah Kanamari, nome indígena com o qual foi batizada no Vale do Javari (AM). E assim, destaca que a partir da Constituição Cidadã, os indígenas passaram a ter seus direitos reconhecidos e não serem mais “meros indivíduos tutelados”. Ela acrescenta ainda que a tradução “é um gesto de valorização e respeito à cultura e à língua indígena”, articulado com a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) promovida pelas Nações Unidas.

Ao citar dados do IBGE, a presidente do STF destacou que cerca de 305 povos indígenas brasileiros são responsáveis pela preservação de 274 línguas, considerando ainda que, “a língua é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela é um componente central da cultura e da identidade de um povo”. Desse universo, estima-se que 70% desses povos historicamente vivam na Amazônia.

A edição em Nheengatu “Mundu sá turusú waá 1988” consta de 196 páginas, contendo uma Apresentação da ministra do STF e do CNJ, Rosa Weber, com tradução do professor Edilson Martins Baniwa; seguido também de um Prefácio assinado pelo presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi e mais ainda do professor amazonense, José Ribamar Bessa Freire, titular de literatura comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a tradução do professor Francisco Cirineu Martins Melgueiro; seguida de uma Introdução assinada pelos coordenador@s Andréa Jane Medeiros (magistrada do Amazonas), Luanna Marly Oliveira e Silva e Luis Geraldo Sant’Ana Lanfredi, traduzido pelo professor Edilson Martins Baniwa.

Tradutores e tradutoras indígenas também publicaram Nota sobre a “Importância da tradução da CF 1988 para as línguas indígenas – Nheengatu”, destacando que o projeto pode representar para as Línguas Indígenas Brasileiras “Vida Nova”, o “Bem Viver” material e espiritual das Línguas e Linguagens Indígenas porque, segundo el@s, “Sabemos que ela pode ser ainda um documento de um mundo desconhecido e diferente para muitos indígenas falantes ativos de suas línguas, mas que agora, com a sua tradução, pode se aproximar mais dos povos indígenas, sobretudo dos falantes da Língua Nheengatu”.

Com a mesma determinação, o professor doutor em antropologia, Daniel Munduruku, que também é ator, representando no horário nobre, o pajé Juracê Guató (macro-gê) na novela “Terra e Paixão”, manifestou-se “impressionado com a iniciativa do STF/CNJ em viabilizar a tradução da Constituição para a língua Nheengatu criando um precedente muito importante para a inclusão da população indígena como parte legítima de nosso país. Este é um passo fundamental para o Brasil se reconciliar com seu passado”.

Para dar continuidade a estas ações, o professor e linguista Edilson Martins Baniwa informou que nos dias de 8 a 10 de agosto estará em Manaus participando do “I Encontro do GT Nacional para a Década Internacional das Línguas Indígenas (DILI 2022-2032)”, com objetivo de reunir um conjunto de especialistas para contribuir com reflexões que nortearão as discussões sobre políticas linguísticas em atenção às línguas indígenas, centradas na pesquisa e na proteção dos povos amazônicas, comprometendo o governo federal e, em particular, o governo estadual a respeito da proposta de Política Estadual de Proteção das Línguas Indígenas do Estado do Amazonas, apresentada por ocasião, a ministra Rosa Weber, que por dever de ofício é a guardiã dos Direitos Constitucionais dos Povos Indígenas do Brasil tão venerada pelos povos originários como é também “Avó do Mundo” para os índios das águas pretas do majestoso Rio Negro.

(*) Ademir Ramos é professor, antropólogo, coordenador do projeto jaraqui e do Núcleo de Cultura Política do Amazonas, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Ufam. E-mail para contato: [email protected]
(**) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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