Crônicas do cotidiano: Check-up geral

Entre exames de sangue, radiografias, tomografia, densitometria e outros de nomes tão bonitos que fazem gosto, como Cintilografia e “Ecocardiograma bidimensional com doppler em fluxo de cores”, que me fez lembrar um “salto triplo carpado” dos ginastas, eu faço crônicas. E o fazer do cronista redunda sempre nessa coisa despretensiosa e quase vagabunda, mas com tino certo: tudo significa, tudo importa, embora, do ponto de vista material, não renda lucro algum. Até cheguei a pensar em mudar de ramo, contudo a curiosidade é chave de cadeia e o assunto estava ali: numa dessas andanças pelas clínicas da cidade à espera das autorizações dos nossos convênios a cada dia mais demoradas, narrar o sacrifício da multidão de enfermos ou, supostamente, enfermos na busca das multivisões laboratoriais, que apontarão uma fissura em nossos esqueletos, um tumorzinho aqui, outro ali, o coração cansado, a próstata aumentada ou um ureter entupido; o sacolejo agudo que registra as arritmias como descompassos na cadência do samba em frente aos jurados, em dia de desfile. Desisti!

Conversando com algumas pessoas ao lado, notei que elas se sentiam orgulhosas pelo tanto de requisições de exames em suas mãos. Algumas eram capazes de comparar o desempenho das máquinas de clínicas concorrentes e conheciam a eficiência dos laudadores. Uma senhora gabou-se de ter identificado o defeito de um aparelho de tomografia e recusou-se a completar o exame, acionou o alarme e pediu para descer da máquina. Constatei que quase todos que recebiam os resultados de exames violavam os lacres dos envelopes e, ávidos, consumiam os resultados, como quem disputa o encanto do diagnóstico com o médico que os solicitou; outros ficavam lívidos, mais que os viciados em ler bula de remédio e que logo se incluem no percentual dos mais frequentes e perversos efeitos colaterais do dito cujo.

Sem sair do enxame – com o que mais parece uma clínica de exames -, cheguei a lembrar dos médicos de antigamente e me atrevi a perguntar às pessoas idosas ao meu redor se lembravam dos médicos caridosos em suas cidades de origem e do trabalho humanitário que alguns faziam, usando o seu tempo livre para visitar as casas dos pobres e “auscultá-los”, no verdadeiro sentido do ato de consultar. Ninguém lembrava e foi mais uma decepção: eu era o mais velho da sala, naquele momento! Nunca ouviram falar do Dr. Conte Telles, do Dr. Hozanna, médicos de Manaus, que visitavam as famílias pobres da periferia nos seus dias de folga e consultavam os doentes: esgarçavam a pálpebra dos olhos, apertavam as unhas, olhavam a palma da mão como se fosse uma “cigana lendo o destino do paciente”, auscultavam os pulmões, o coração, apalpavam a barriga, acendiam uma lanterninha, mandavam o doente abrir a boca e a luz parecia ir até a alma; batiam com um martelinho nos ossos da perna do doente; davam o diagnóstico de pronto e ainda deixavam “amostras grátis” de remédios. Eles não existem mais, o que não significa dizer que esse trabalho humanitário de profissionais da saúde não subsista em outras formas.

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Hoje, se pensa mais na cadeia produtiva das doenças que no sofrimento por elas provocado e, entre uma coisa e outra, há uma verdadeira indústria dos processos de cura, gerando uma Economia da Saúde, cara e próspera. E os médicos, quase proletarizados, pouco importam.

Guiado por Nuccio Ordine, em sua obra A Utilidade do Inútil: um Manifesto (RJ: Zahar, 2016, p.152-153), chego à Epistole 10-20, in Lettere sulla follia di Democrito, dando conta do pedido do povo para que Hipócrates, o pai da Medicina, se ocupasse da propalada loucura de Demócrito, que não mais continha o riso. E a resposta do pensador: “Nem a natureza, nem um deus me prometeriam dinheiro para que eu viesse, por isso, povo de Abdera, também vós não me imponhais condições. Deixai que eu exerça livremente minha profissão. Aqueles que cobram um pagamento obrigam o seu conhecimento a servir como se o tornassem escravo… A vida dos homens é algo miserável; como o vento na tempestade; ela é atravessada pela incontrolável avidez do ganho; ah, se contra ela se tivessem unido todos os médicos para curar uma doença que é mais grave que a loucura, porque é considerada um bem, quando é uma doença e produz o mal”. Demócrito não era louco, apenas ria dos “vazios de ações justas”; daqueles que, imbuídos pela ganância, “abrem as veias da terra para se enriquecer, fazem a mãe terra em pedaços”!

Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional.
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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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