Crônicas do cotidiano: o ‘sangue nos olhos’, o autoritarismo e o parlamento

Seria uma sessão solene, um momento festivo, mas não, foi um momento real: não é a voz e a imagem do líder de um bando que, depois de dominar o território, invade a fazenda e aparece no alpendre da casa grande prometendo vingança; é o Presidente da Câmara dos Deputados, na abertura do Ano Legislativo Brasileiro! O Senhor Presidente se faz porta-voz dos seus pares, eleitos pelo voto popular, e se propala dono do poder no país; e, miseravelmente, isso é verdadeiro, fruto do nosso processo civilizatório! Processo torto, que nos persegue, queiramos ou não.

Assim, o acontecido deixa de ser meramente pessoal, relativo a um momento protocolar do nosso parlamento para tornar-se a forma usual de condução do poder no Brasil, que ainda não é republicano. Não se discute se as eleições foram ou não limpas. Claro que foram! As lutas gloriosas nos levaram a um Estado Democrático de Direito, mas, infelizmente, ainda não alcançamos a plenitude, mesmo indo às urnas, elegendo nossos representantes em eleições sem fraude.

Os olhos sangrando de ódio dos que ameaçam os mais fracos fazem parte de outros processos: do “mandonismo”, do “patrimonialismo” e do sentimento ilegítimo de ser dono do que não é seu. Começa com o menino que se diz dono da bola; segue com o machismo, que divide, com base na força, quem pode e quem deve obediência simplesmente  por ser mulher; persiste com a certeza de que o poder sobre os outros é privilégio de uns poucos, apanágio de algumas famílias. Isso é o poder!

PUBLICIDADE

E esse arreganhar de dentes e o sangrar d’olhos, cercado de jagunços no domínio de seus latifúndios ou de meganhas e “puxa-sacos” nos púlpitos do poder, é usual e quase natural; é a maneira de expressar essa certeza de mando, que não se esgota, apenas, com eleições regulares, mas que requer um banho de civilidade contra a estupidez.

“A contaminação de espaços públicos e privados é uma herança pesada de nossa história, mas é também um registro do presente. A concentração de riqueza, a manutenção dos velhos caciques regionais, bem como o surgimento dos ‘novos coronéis’ e o fortalecimento de políticos corporativos mostram como ainda é corriqueiro no Brasil lutar, primeiro, e antes de mais nada, pelo benefício privado.

Essa é uma forma autoritária e personalista de lidar com o Estado, como se ele não passasse de uma generosa família, cujo guia é um grande pai, que detém o controle da lei, é bondoso com seus aliados, mas severo com seus oponentes, os quais são entendidos como ‘inimigos’” (Lilia Moritz Schwarcz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. SP: Companhia das Letras, p.87, 2019).

E a historiadora prossegue nessa radiografia do nosso antirrepublicanismo, mostrando que o mandonismo escrachado, o autoritarismo manifesto nas pequenas coisas e nas relações humanas e sociais servem de fachada a um submundo, que pode até encobrir a corrupção e a vilania. Como as familiaridades dos poderosos se espraiam por todos os poderes da República, não é raro o afrouxamento das normas, os perdões, as revisões das coisas transitadas em julgado para ajustar acordos e chancelar privilégios, que acontecem sem que nada possamos fazer.

Às vezes, até os mais politizados relevam os deslizes dos que se dedicam à vida pública. Outros, pensam até que o exercício político é um dom divino ou mesmo um fator genético, grudado a algumas famílias, que se reproduz e se sucede na forma de poder, com suas benesses e graças. Por isso, um embate atrás do outro, onde os miúdos perdem e são confinados “em covas fundas”.

Ontem, eram os discursos calorosos para diminuir o Estado, torná-lo mais liberal; depois a defesa de uma pauta de costumes extremamente conservadora. Hoje, a apropriação completa do Estado.

Esse “tudo é meu” é a ladainha das elites, que se escondem nos desvãos da nação que ainda não alcançou a maioridade. Para manter a falsa superioridade, as elites encastelam-se à sombra dos que detêm o poder de fogo, sejam o das armas, como ocorreu em vários momentos da história; ou de setores do  “mercado”, que não têm pejo em promover a corrupção, via seus agentes. O Parlamento é indispensável na democracia, representa o povo. Mas, o povo todo, não é isto que está aí!

(*) Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional, graduado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor emérito da Ufam.
Leia mais: Crônicas do Cotidiano: A presença do outro, a ação comunicativa e a infocracia
PUBLICIDADE
(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.