Crônicas do Cotidiano: prometi a todos, todas e todes que não falaria sobre isto

…Mas, fui instigado a dizer o que penso sobre algo que nenhum de nós, em sã consciência, deve ter posição definitiva. E, se tiver, gostaria de pedir um momento de atenção aos argumentos que me proponho a expor. A possível divergência comigo, se houver, pode ser perfeitamente salutar e até esperada, pois vivemos um mundo de incertezas. Embora os fatos borbulhem diariamente, evitamos  a discussão sobre o assunto. Uns ouvem, fazem um comentário a seu modo e saem pela tangente,  evitando discussões calorosas. Outros, fazem muxoxo, dão as costas e vão embora.

Circula na internet um vídeo lacrador do Movimento Brasil Livre (MBL), que deseja expor ao ridículo o uso do pronome “todes” como vocábulo da língua portuguesa nas saudações, quando das cerimônias oficiais ou não, no Brasil. Esquecem os lacradores, ao afirmar que “todes” não existe porque a regra gramatical da língua portuguesa só consagra dois gêneros e o gênero neutro, existente na língua latina, foi incorporado ao gênero masculino. Verdade parcial! Tal afirmação peremptória só reforça o machismo. Nas regras da língua latina, o gênero está associado à seres animados e inanimados e não ao sexo das pessoas. A extrema direita, obcecada pela sexualidade alheia, tenta incluir o termo no seu pacote de vigilância dos costumes, rotulando-o como parte pecaminosa da “ideologia de gênero”. O outro ponto a ressaltar, sem arvorar-me em gramático, é que o meme esquece que a linguagem é dinâmica e pode muito bem incorporar termos novos e erigir novas regras que os acomodem. Tem sido assim, simplesmente!

A questão não é esta, a ojeriza e as alvíssaras ao meme, apimentam a discussão porque vivemos uma luta política intensa e o que convém ao reforço das ideias, das ideologias sempre é bem-vindo, sobretudo se colocar em discussão o  Patriarcalismo Brasileiro, o Patrimonialismo confesso das nossas elites e o Machismo Desmesurado que marca as relações de gênero, as formais e as oriundas das derivas do identitarismo. O “todos” é visto como propriedade do “macho Alfa”, dono de tudo, que aparece nas relações cotidianas entre os humanos, sejam homens, mulheres e outros possíveis gêneros, como normalidade; o “todas”, na forma cerimonial, é percebida como uma concessão, uma deferência desnecessária, uma “redundância” como diz o meme do MBL. O desprezo às mulheres é tão grande que obrigou o Supremo Tribunal Federal a gastar tempo e verbo para dizer aos operadores do direito que é inconstitucional alegar em juízo, aceitar declarações ou “provas fajutas” como pretexto para  absolver o “bicho homem” que matou a companheira  “em legítima defesa da sua honra”; obrigou o Congresso Nacional a aprovar lei para que as Universidades (que alegam sempre ter autonomia) fossem obrigadas a expedir diplomas e certificados com flexão de gênero; o gênero feminino usurpado pelo masculino determinante, isto é, para que uma mulher pudesse ter o título de médica, engenheira, professora, mestra ou doutora (Lei 12.605/12); o “todes”, pronunciado por quem quer que seja ou onde quer que seja, desperta os “nossos mais baixos instintos” (como diria aquele senhor político preso) no seu extremo; na propalada benevolência, nos causa uma dor de ouvidos, um sentimento de traição à língua pátria ou complacência de ocasião, quando mais politizados somos. Por quê? Porque nomina a multidão de cidadãos de segunda e terceira categorias, seres humanos que tiveram a sua dignidade negada, humilhados diuturnamente pelo que são e por aquilo que não são. Se o termo vai pegar, não sabemos. Como forma de resistência, lembra as obrigações do Estado na defesa de todes, todas e todos na garantia da igualdade de direitos entre os sujeitos, independente dos clamores de torcidas organizadas, lacradoras ou não. Nos conformes do Artigo 5o, da CF!

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Cabe ao mesmo Estado, também, distinguir direitos fundamentais de delírios individuais ou coletivos, que atentem contra os modos de convivência, de respeito à vida da espécie humana, da sua existência e convivência digna e pacífica, mesmo na diferença. E buscar a harmonia necessária para a paz social, contrariando, até, maiorias embebidas no machismo empedernido.

Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional.

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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