Entenda como igrejas usam religião de matriz africana para ‘indústria da demonização’

Entidades Exu e Maria Padilha são citadas com frequência em cultos de igrejas pentecostais e neopentecostais (Composição de Paulo Dutra/Revista Cenarium Amazônia)
Ricardo Chaves – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – As igrejas pentecostais e neopentecostais vêm ganhando adeptos em todo o País e, um movimento tem chamado a atenção, são os elementos cada vez mais presentes em cultos de referências historicamente ligadas às religiões de matriz africana. O fenômeno é observado por teólogos e religiosos de matriz africana em Manaus.

Para especialistas consultados pela REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, a presença é encontrada na sacralidade, liturgia, indumentária e até na gastronomia. Além disso, para os estudiosos, a adoção tem relação com a formação de grupos, que, em sua origem, incorporaram esses elementos para agregar mais pessoas em suas fileiras, especialmente, no uso da mídia. 

Para a reportagem, o teólogo, historiador e cientista da religião Daniel Lima aponta que essa “apropriação” feita pelas igrejas pentecostal e neopentecostal se revela na imposição de mãos, sessões de descarrego ou giro do corpo realizados em cultos que, de forma litúrgica, são rituais da umbanda e do candomblé.

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O descarrego, tradicional em ritos de religiões de matriz africana, é realizado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) (Reprodução/Redes Sociais)

“O neopentecostalismo vem estabelecendo uma relação dialética com as religiões de matriz africana nos últimos anos. É uma relação ambígua e simultânea de recusa e ruptura quanto ao diálogo e à tolerância e de interação e apropriação quanto aos ritos. Existe um sincretismo, isto é, uma mistura indiscriminada de crenças e práticas que se retroalimentam em ambas tradições religiosas”, explica Lima. 

O teólogo continua: “Essa relação se torna latente em algumas práticas litúrgicas, como vestes brancas, imposição de mãos, giros do corpo, sessões de descarrego ou de “libertação”. Os cultos do neopentecostalismo se apropriam de uma dimensão mágica amplamente disseminada na religiosidade popular, adotando um vasto repertório de símbolos mediadores por meio de óleos ungidos, águas consagradas, roupas benzidas, galhos de arruda, sal e afins”, afirma.

‘Roubo’ ao patrimônio cultural

Para o coordenador-geral da Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (Aratrama), pai de santo Alberto Jorge, as práticas adotadas pelo neopentecostalismo abrem espaço para um “verdadeiro roubo do patrimônio cultural material e imaterial”. 

“Em um primeiro momento, a Igreja Deus é Amor começou a fazer verdadeiros espetáculos grotescos de invocações de nossas entidades da umbanda e da quimbanda, algo muito parecido com sessões de desenvolvimento de médiuns. No culto são chamados exus e pombagiras. Isso sem o uso do tambor ou de qualquer instrumento característico de nossas liturgias. A moda pegou, se espalhou para outras igrejas e o uso de atabaques e até o xequerê passaram a existir”, afirmou.

Vídeo publicado em uma rede social mostra culto em igreja evangélica no qual participantes usam roupas brancas e tocam tambores (Reprodução/TikTok)

O livro “O Reino – a história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal”, publicado em 2022 pelo jornalista e escritor Gilberto Nascimento, mostra como a Igreja Universal absorveu parte dos elementos das religiões de matriz africana para, supostamente, afastar o demônio e outros espíritos malignos, ao mesmo tempo que as combateu.

A obra relata controvérsias envolvendo a igreja e detalha as práticas de pastores de utilizarem os ritos da umbanda e do candomblé em determinadas reuniões, chamadas de “sessões”, e de adotarem como vestimenta roupas brancas e trajes comuns às religiões de matriz africana. 

Capa do livro ‘O Reino – a história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal’ (Reprodução/Internet)

O fenômeno é observado no Amazonas pelo coordenador-geral da Aratrama. “A Igreja Universal passou a usar sal grosso, arruda e o estouro de pólvora. O uso do rito de Oyá e Ṣàngó carregando a panela de fogo por pastores travestidos com roupas africanas. Na gastronomia, vimos a aberração do bolinho de Jesus, que nada mais é que o acará e o acarajé de Oyá. Usam a pipoca do Ọ̀balwaye, a distribuição de doces e bombons de Ìbejì. Não há limites para o absurdo da apropriação indébita do patrimônio material dos Povos Tradicionais de Matriz Africana e Comunidades Tradicionais de Terreiro”, avalia o pai Alberto Jorge.

Perseguição em números

Apesar das referências cada vez mais latentes, as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil. O 2° Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, divulgado em 2023, aponta que os casos de ataque cresceram 270%. Em 2020, foram registrados 86 casos, em 2021 chegou a 244 casos. Outras religiões também sofreram ataques semelhantes, entre elas, a muçulmana, a judaica e a indígena.

Enquanto as religiões de matriz africana sofrem com o desrespeito à ancestralidade, o crescimento dos estabelecimentos religiosos no País é liderado por igrejas pentecostais e neopentecostais. Uma nota técnica intitulada “Crescimento dos Estabelecimentos Evangélicos no Brasil nas Últimas Décadas”, publicada no fim do ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revela um expressivo crescimento desse grupo nos últimos 20 anos.

Tabela do 2° Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe (Reprodução/Unesco)

Entre os 124.529 estabelecimentos existentes no País, em 2021, 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais, liderando o resultado, seguidos por 19% de evangélicos tradicionais e 11% de católicos. Entre os evangélicos pentecostais, a Assembleia de Deus é a que possui o maior número de estabelecimentos, 14%. 

Exaltação e demonização

O crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais, que são os principais estabelecimentos religiosos do Brasil, vem ocorrendo ao mesmo tempo que utilizam rituais ligados a religiões de matriz africanas em cultos e sessões. Estudiosos buscam explicar essa aparente contradição.

O cientista da religião Daniel Lima pondera e lembra que esse universo de práticas pentecostais e neopentecostais recebe duras críticas do próprio segmento evangélico brasileiro, porém, essa contradição existe, há apropriação. “Tem a ver com a formação desses grupos que, em sua origem, incorporaram outros elementos para agregar mais pessoas em suas fileiras, especialmente, no uso da mídia (rádio e tv), inclusive, ouve-se nos programas pastores dizerem algo como ‘aqui nós aceitamos todas as religiões’”, avalia.

Sobre os ritos serem demonizados nessas igrejas, o cientista explica: “Ao mesmo tempo, nos discursos dos púlpitos, nos livros e na própria mídia, demonizam as práticas de religiões africanas porque essas igrejas incorporam o fundamentalismo religioso que esteve e está sempre presente na matriz pentecostal brasileira. O discurso é exclusivo e excludente, de que somente a fé pentecostal é genuinamente verdadeira e bíblica”, ressalta.

O teólogo, historiador e cientista da religião Daniel Lima (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Já pai Alberto Jorge acredita que o ser humano precisa se comunicar de forma objetiva e subjetiva e o neopentecostalismo traz essa proposta de ressignificação, de redesignação, de reinvenção do pentecostalismo.

“O saudoso arcebispo Metropolitano de Manaus, Dom Sérgio Castriani dizia com muita propriedade ‘o cristianismo não podia criticar o sincretismo dos povos tradicionais de matriz africana, pois o próprio cristianismo é fruto de vários sincretismos que se juntaram por séculos”, ressalta Alberto Jorge.

Mães de santo paramentadas acompanham atentas a missa que celebrou São Sebastião em tradicional igreja no centro de Manaus (Reprodução/Arquivo Pessoal)

O líder religioso critica, ainda, a forma como os pastores adotam referências de matriz africana. Para ele, quanto maior e mais tétrico o ‘depoimento’ do possuído, maior e mais substancial a contribuição dos fiéis crédulos.

“A maioria dos pastores, obreiros e fiéis tem os dois pés e o resto do corpo na ‘macumba’. Muitos que ‘exorcizam’ demônios, exus e pombagiras até frequentam terreiros às escondidas ou em nome de suas reeleições parlamentares. Tudo isso é parte da indústria midiática da demonização, algo que, comprovadamente, rende muito, muito dinheiro. Esses ‘religiosos’ e seus templos têm o paciente, a doença e o remédio de uso contínuo“, aponta o religioso.

O pai de santo Alberto Jorge (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)
Teologia da Prosperidade

Em um artigo publicado em 2016, intitulado “Sagrado Profano: a umbanda e o mercado religioso”, Ítalo Lobo e Florence Dravet explicam que o Brasil experimenta uma nova modalidade de experiência religiosa mediada pelos veículos de comunicação, a chamada ‘Teoria da Prosperidade”, que se consolidou como movimento doutrinário em 1970, vindo a ser disseminada no Brasil com o surgimento das igrejas neopentecostais e com o uso ostensivo dos meios de comunicação, especialmente, a televisão, com a ampliação de programas e emissoras evangélicas ganhando, cada vez mais, adeptos em todas as camadas sociais.

“A Teologia da Prosperidade prega uma abordagem da Bíblia e de vivência da religião que rompe com a ética protestante presente no protestantismo histórico e com os temas comuns às religiões cristãs, como a caridade, a salvação e a rejeição dos prazeres mundanos”, explicam em trecho do artigo. 

Essa supervalorização dos aspectos visuais do culto tem o intuito de cativar grandes plateias e atrair novos fiéis. “Um dos pioneiros na utilização das técnicas de propaganda e marketing no cenário religioso é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) que, hoje, possui mais de dois milhões de membros e carrega em seu histórico a aquisição do Grupo Record, uma das maiores emissoras de televisão do País”, citam.

Leia mais: Lideranças lutam pela reparação de itens sagrados para religiões de matriz africana
Editado por Adrisa De Góes
Revisado por Adriana Gonzaga
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