Falta de regulamentação e de olhar humanizado resulta em exclusão de atletas intersexo

As primeiras manifestações de presenças intersexo no esporte são datadas a partir de 1936 (Drapeau Intersexe/Shutterstock)
Com informações Portal IG

SÃO PAULO – O acesso ao esporte e a presença do público intersexo em competições de alto rendimento são cercados por uma nuvem de fumaça que mantém longe do senso comum todo histórico de participação desta população em eventos esportivos e a forma como esses indivíduos são abordados e enxergados no meio. Alguns casos que ilustram a discriminação desses atletas datam da primeira metade do século 20.

A polonesa naturalizada norte-americana, Stella Walsh, medalhista nos Jogos Olímpicos de 1932 e 1936, foi reconhecida como intersexo em 1980. Já Tamara Press, atleta soviética do arremesso de peso e lançamento de disco, estabeleceu recordes nos Jogos Olímpicos de 1960 e 1964, porém, mais tarde, foi “acusada” de ser intersexo. A também polonesa Ewa Klobukowska, competidora do revezamento 4 x 100 metros, nos Jogos de Tóquio-1964, em razão de um teste de verificação sexual aplicado três anos depois, foi declarada como portadora de “cromossomos masculinos”. 

Todos esses casos apontam a referencialização de um ideal de corpo biológico. Vale lembrar que pessoas intersexo são aquelas que nascem com corpos que não possuem congruência esperada pela biologia, dentro dos ideais de sexo aos quais a sociedade está inserida. A medicina já identificou mais de 40 Diferenças de Desenvolvimento do Sexo (DDS).

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ABRAI

A visão binária de sexo, imposta socialmente, leva muitas pessoas intersexo a serem submetidas a interferências cirúrgicas para desfazer essas características, antes mesmo que elas possam se reconhecer como intersexo e compreender do que se trata – inclusive, o descobrimento tardio é bem comum entre essa população.

Danilo Moraes, intersexo e gerente da Associação Brasileira de Intersexo (Abrai), praticou futsal e luta por um tempo na categoria mirim, que compreende crianças entre 12 e 13 anos, mas nunca chegou a competir profissionalmente. Naquela época, Danilo já se entendia enquanto pessoa intersexo. 

“A palavra ‘intersexo’ ainda era pouco usada no Brasil. Eu sabia o que significava, mas não tínhamos como chamar porque não existiam informações. Havia muito tabu. Sabia lidar muito bem com isso, e os conflitos familiares eram pontuais, porém, tive pessoas que me apoiaram bastante. A dificuldade maior era no meio do esporte, porque existia muita generalização e esse ambiente não sabia lidar com pessoas intersexo”, conta. 

Por ter praticado esporte em duas modalidades distintas, Danilo explica que ambas apresentavam dificuldades em compreender e abordar o corpo e a vivência intersexo, mas destaca que na luta os empecilhos se mostravam mais intensos. 

“Existia muito contato direto entre as pessoas. Até então eu lutava na categoria feminina, depois cheguei a passar pela retificação, então, alguns pais reclamavam porque ‘era visível’, por conta do ‘biológico masculino’ e coisas assim. Cheguei a evitar praticar por muito tempo. Na maioria das vezes, precisava ir para o grupo masculino, a fim de não ter problemas”, explica ele. 

O iG Queer questionou se o fato de o futsal ser um esporte em grupo pode ter amenizado as problemáticas sofridas. Danilo diz que “talvez esse seja um ponto. Na luta, os olhares se concentram entre duas pessoas, mas no futebol esse aspecto é muito menos influente. Contudo, creio que não seja só por isso. Acredito que foi mais pela vivência em si”. 

O gerente da Abrai comenta, ainda, que, ao seu ver, as instituições esportivas avançaram pouco no que diz respeito à inclusão de atletas intersexo. Muito ainda precisa ser feito para que haja luz sobre essa população e segurança em participar de quaisquer eventos esportivos. 

“Na minha opinião, ainda precisamos avançar, tanto na pauta intersexo quanto na pauta trans. No nosso caso, precisamos de mais estudos na área e ter um olhar mais cuidadoso, ético e carinhoso, não só pelas competições, mas pela saúde mental. A minha experiência, por exemplo, é algo que me afeta, até hoje, e ainda gera gatilhos ao ponto de mesmo jogando apenas como hobby, atualmente, me causar desconfortos. Fico sempre me perguntando o que teria acontecido se eu tivesse levado a carreira de atleta adiante”, ressalta. 

“Não é apenas um corpo, nem uma peça de tabuleiro que as pessoas usam enquanto são úteis. As instituições descartam essas vivências quando descobrem algo com o qual não sabem lidar e tiram, totalmente, o mérito desse atleta, então, é um assunto bastante complicado que precisa ser melhor desenvolvido”, continua. 

Assim como nos casos de atletas trans, cujo maior argumento para validar a exclusão dessa população, no esporte, é uma suposta vantagem física, atletas intersexo são atacados com essa mesma lógica. Danilo chama atenção para isso e comenta sobre como a falta de pesquisas e aprofundamento do debate fomentam essas alegações, que, consequentemente, fazem a engrenagem da marginalização continuar girando.

“Quanto à questão da ‘vantagem’, percebo que não tem fundamento. Sempre tive o mesmo desempenho enquanto praticava esportes na categoria mirim, por exemplo, então é complicado resumir o talento da pessoa e o esforço dela em uma caixinha de ‘vantagem’, sendo que cada um tem um desenvolvimento no esporte. Todos treinam e se dedicam. As pessoas não enxergam nada disso, querem, simplesmente, taxar tal hormônio como mais forte ou mais rápido”, declara. 

Cenário atual, resgates sociais e urgência institucional

Adriano Martins Rodrigues dos Passos é professor de educação física e especialista em atividade física adaptada. Ele trabalhou em escolas, por 20 anos, e desenvolveu uma tese de doutorado sobre o surgimento da segregação entre homens e mulheres no esporte. Durante a pesquisa, acabou esbarrando nas pautas intersexo que fazem parte de toda a apuração acerca de como a estrutura esportiva exclui os indivíduos e os respectivos corpos que possuem.

De acordo com ele, em 1928 nascem as chamadas tecnologias de gênero, impostas para a manutenção do esporte enquanto um fenômeno social categorizado que carrega, até o século 21, a ideia de que a separação entre homens e mulheres sob uma perspectiva biológica é necessária e natural. 

“O esporte é uma construção social”, explica Adriano. “Se ele pode excluir ou criar segregações em categorias para mulheres trans, homens trans e intersexo, é porque tudo pode ser desconstruído também”, exemplifica ele. “A questão é: as pessoas são diferentes, mas o que é feito com essas diferenças e os valores que são atribuídos a elas é que devem começar a ser considerados. Da mesma forma, se as modalidades esportivas passaram por uma construção, significa que somos capazes de repensar o esporte de modo que essas diferenciações não sejam excludentes”. 

Sobre os exames de verificação de sexo, Adriano refere-se a eles como políticas de gênero, pois “essas regras possuem destinatário. Elas têm um grupo sobre o qual exercem controle. Não são regulamentações e elegibilidade como fazer parecer que são”. Como exemplificado no início da reportagem, desde 1928 emergiram relatos de pessoas intersexo no esporte – porque “levantavam suspeitas” – que foram submetidas a exames e avaliações que colocaram os respectivos corpos em uma posição desassistida.

“A ideia de criar marcadores de gênero, tanto com base em fatores biológicos quanto sociais e econômicos, vem de um objetivo binarista de separar os homens das mulheres e determinar o que cada um pode ou deveria fazer”, diz Adriano. 

“As suspeitas da presença de pessoas intersexo no esporte surgem em 1928, mas se intensificam em 1936 com duas mulheres que já tinham competido antes, no alto rendimento, sem problemas”, conta. “Uma delas, a polonesa Stanislawa Walasiewicz, levanta dúvidas sobre a norte-americana Helen Stephens. Ela passa pelo primeiro exame de verificação de sexo, levada a um comitê médico que avaliou se ela possuía os caracteres biológicos lidos como femininos”.

Adriano comenta, ainda, que a precariedade da medicina, na época, foi um fator que interferiu nesse processo e que o influenciou também. 

“Naquela época, nem sabiam o que procurar, na verdade. Chegaram à conclusão que ela era uma mulher do ponto de vista biológico e recebeu a medalha. Posteriormente, Stanislawa, que se mudou para os Estados Unidos, morreu baleada em um assalto e o corpo passou por uma autópsia, durante a qual concluiu-se que ela possuía uma genitália ambígua. A partir disso, começaram a surgir maiores dúvidas sobre a possibilidade de outros atletas serem intersexo”, elucida. 

Com o avanço das suspeitas, os exames de verificação de gênero se constituíram de modo mais sólido, em 1946, pós-Segunda Guerra Mundial. De acordo com Adriano, a ideia seria que eles fossem feitos de maneira coletiva, mas não é assim que ele é posto em prática, pois o sistema é mais aleatório e com base em suspeitas pontuais.

O especialista chama a atenção para o fato de que o cerne da prática esportiva envolve, simultaneamente, questões legais e médicas, mas uma vez que elas estejam em desacordo, criam-se mais lacunas para exclusão e violência. 

“O esporte de alto rendimento não tem respeitado nem o conceito científico, nem a legalidade. Até o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas já entrou na jogada e disse que esses procedimentos de verificação não são legais, mas o poder desses comitês são aplicados sobre os Estados e não sobre as instituições esportivas, então, elas podem tomar decisões que não condizem com os princípios de determinadas nações. Essa questão precisa ser levantada quando se fala da exclusão intersexo, porque estamos falando de uma ilegalidade e uma posição contrária aos Direitos Humanos”, explica. “Os atletas estão vulneráveis porque falta um limite legal às regulamentações, exigências e demandas que as instituições esportivas de alto rendimento impõem”. 

Sobre a polêmica possibilidade de “vantagem”, Adriano diz que existem pesquisas ainda em processo de desenvolvimento que tentam elucidar se há ou não um cenário vantajoso para esses atletas. No entanto, ele se coloca contrário a essa possibilidade. “A ideia do esporte é verificar quem tem maior vantagem sobre o outro, quem vai vencer. O termo ‘vantagem’ é usado como se não fosse inerente à própria competição”, diz.

Sobre o tratamento dado às pessoas intersexo desde os primórdios das competições de alto rendimento, Adriano pontua que ainda é uma parcela da população que sofre com a subnotificação. Um fato que contribuiu para esse fenômeno é a maneira como muitas pessoas intersexo se descobrem tardiamente, e os marcadores de gênero e sexo reproduzidos alimentam cada vez mais a exclusão.

“A gente não tem conhecimento se somos intersexo desde que nascemos. Muitas pessoas não sabem se são ou não. Estamos falando de uma construção muito completa da ideia de sexo que é bem confabulada durante um tempo, e toda vez que se foge dela é criada uma resistência. Sempre que esse grupo ganha alguma notoriedade, vão surgir obstáculos impostos contra ele. As resistências não negam, elas controlam, o que é bem pior. Quando se tem uma negação, é algo contra o qual você luta diretamente. Mas, em se tratando de controle, exige diálogo. No momento, estamos nessa fase de dialogar”, declara.

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