Famílias de crianças trans lutam na Justiça para ter nome social reconhecido

Aline Dias e o filho L., de 4 anos: "Não botei filho no mundo para ser infeliz." (Edilson Dantas / Agência O Globo)

Com informações do InfoGlobo

SÃO PAULO (SP) – Na véspera de tirar a carteira de identidade, M., de 11 anos, cortou o cabelo. Estava ansioso para tirar a foto para o RG. No horário agendado, foi com a mãe a uma unidade do Poupatempo, em Osasco, na Grande São Paulo. Mas a tentativa acabou frustrada. M. saiu chorando. E a mãe, Mônica, com raiva. A expectativa não era apenas pela foto. M. queria um documento oficial que o representasse, com o nome masculino na frente. O nome de registro, feminino, passaria ao verso da carteira de identidade. A inclusão do chamado nome social no RG é um procedimento simples, autorizado com um requerimento por escrito. Mas, desde junho, famílias de vários municípios de São Paulo não conseguem concluir o processo, e acusam autoridades de retrocesso e viés ideológico nas negativas.

“Conhecemos famílias com crianças trans que fizeram isso sem nenhum problema. Não é uma retificação de nome e gênero, não altera o registro, apenas acrescenta o nome social na frente da cédula de identidade”, explica a mãe de M., Mônica Godoy, de 56 anos. “Para nossa surpresa, disseram que o serviço estava suspenso. Foi constrangedor, um retrocesso.”

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O decreto federal 9.278/2018 expressa o direito à inclusão do nome social no documento de identidade desde que a pessoa interessada apresente um requerimento. Ele não distingue entre maiores ou menores de idade. Na prática, no caso de crianças e adolescentes, os pais ou responsáveis assinam o requerimento. Não há alteração do nome do registro civil nem exigência de documentação adicional, e o nome social pode ser excluído depois.

Mônica ainda fez um novo agendamento, para outra unidade em um município a 200 quilômetros. Mas se deparou com a mesma situação. Advogada e presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB de Osasco, ela resolveu levar o caso à Justiça. A sentença favorável à inclusão do nome social de M. no documento saiu esta semana.

“Ficamos felizes, mas preocupados. Não deveria ser necessário judicializar um procedimento administrativo simples. O nome social define a diferença entre ser respeitado e ridicularizado”, diz Mônica.

Nem todas as famílias têm conhecimento, tempo ou dinheiro para entrar com ação judicial. E não são raros os relatos de cansaço e constrangimento no processo.

“Paguei a taxa, emiti o comprovante, meu filho cortou o cabelo, seria a primeira foto como menino. Mas a atendente disse que desconhecia a possibilidade de inclusão de nome social”, conta a analista financeira Aline Dias, de 34 anos, que levou o filho L., de 4 anos, no Poupatempo de Diadema, na Grande São Paulo.

Ela diz que insistiu, tiraram a foto e prometeram o documento em 15 dias. Mais de um mês depois, avisaram por telefone que ele tinha sido negado.

“Há muito desconhecimento e julgamento”, diz Aline. “Acham que as mães vão influenciar os filhos ao buscarem a inclusão do nome social. Como se toda mãe quisesse incentivar isso no país que mais mata trans no mundo. Já sofri muito. Mas não botei filho no mundo para ser infeliz.”

O psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) da Universidade de São Paulo (USP), explica que, a partir de 2 ou 3 anos, crianças já reconhecem suas identidades de gênero. Cerca de 40% dos acompanhamentos no Amtigos são de crianças trans.

“Quando uma criança fala que está triste, com dor ou fome, valorizamos essa comunicação. Por que não ouvir o que ela diz da identidade de gênero?”, questiona Saadeh. “Há um movimento retrógrado. Negar o uso do nome com o qual se identificam é tirar dessas crianças o direito e a possibilidade de inserção social.”

Inquérito aberto

Quando chegam para emitir um documento com nome social, pais e filhos já passaram por um longo processo de dor e aceitação.

“Ter o documento significa não ter que apresentar a criança toda hora como uma criança transgênero. Evita constrangimentos em laboratórios, em médicos, quando gritam bem alto um nome de menina e levanta um menino”, diz a roteirista Raquel Paiva, de 44 anos.

No final de junho, ela levou os dois filhos para tirarem RG no Poupatempo de Santo Amaro, na capital paulista. No caso do mais novo, L., de 11 anos, ainda incluiria o nome social.

“Preenchi o requerimento, fomos bem atendidos, sem olhares de preconceito. Saímos felizes. Duas semanas depois, disseram que o documento do L. tinha sido negado”, lembra Raquel.

O filho, conta, começou a questionar as roupas de menina aos 2 anos. Aos 5, passou a recusar vestidos e enfeites de cabelo. Aos 7, vieram crises de pânico e medo. Foram anos de terapia, para L. e a família.

“Não consigo nem imaginar o que é se olhar no espelho e não se reconhecer. Ainda tem gente que diz que é modismo. Como? Meu filho já perguntou se veio ‘com defeito’. Eu digo que vamos lutar para que ele seja feliz.”

O Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, ligado à Secretaria de Segurança Pública e responsável pela emissão de RG no estado, diz que não impõe impedimentos à inserção do nome social no documento de menores.

O MP, por sua vez, informa que instaurou um inquérito civil em 30 de julho “para apurar possível ilegalidade” praticada pelo IIRGD. A promotora que assina a portaria, Luciana Bergamo, conta que a iniciativa veio após denúncia de uma mãe da capital, que narrou saber de outros casos em vários municípios do estado.

“O que me disseram é que o IIRGD estava se recusando a incluir o nome social por conta de um colega promotor de Pindamonhangaba, que em 2019 teria efetuado uma recomendação ao posto local do Poupatempo para que não registrasse e encaminhasse o caso para a Vara da Infância”, diz.

Na portaria, ela questiona por que a recomendação foi aplicada a todo o estado.

“Não podem utilizar essa recomendação de Pindamonhangaba, que não é uma ordem judicial, mas uma recomendação passível de alteração, para indeferir processos do estado todo”, diz a promotora.

O IIRGD tem até setembro para se manifestar.

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