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Guardiões da Terra: como povos indígenas e comunidades tradicionais estão preservando ecossistemas
Indígenas Xavante realizam a colheita do buriti perto da aldeia Ripá, na TI Pimentel Barbosa, em Mato Grosso, dando exemplo de harmonia entre ocupação humana e floresta — (Foto: Rogério Assis / ISA)
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16 de maio de 2024
Da Revista Cenarium*
MANAUS – Um artigo de revisão publicado em meados de março na revista Nature Ecology & Evolution sugere que povos indígenas e comunidades locais têm um papel fundamental na proteção da biodiversidade e dos ecossistemas, mas que este papel ainda é negligenciado pelos esforços de conservação convencionais. O trabalho é assinado por 20 pesquisadores e foi liderado pela bióloga brasileira Carolina Levis, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O estudo elenca cinco exemplos de conservação bem-sucedidos na América do Sul, denominados “pontos de esperança socioecológicos”. Os autores observaram uma rede de interações entre a biodiversidade e povos indígenas, bem como comunidades locais de diferentes culturas, das quais emergem benefícios mútuos, ou seja, para os dois lados.
Ilustração: Clarice Wenzel/ Instituto Serrapilheira – Instituto Serrapilheira
Evidências de como os povos tradicionais se conectam ao ambiente e o moldam beneficamente, bem como a suas próprias culturas, não faltam. Uma delas é a existência na região amazônica de terra preta -solos escuros repletos de cerâmicas indígenas, ocasionados principalmente pelo acúmulo de resíduos orgânicos e uso do fogo, e são resultantes de práticas de longo prazo.
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A terra preta amazônica revela o uso do solo por populações indígenas desde antes da chegada dos europeus, resultando em uma terra fértil, rica em microrganismos e pequenos invertebrados, com alta diversidade vegetal.
“Esses solos foram enriquecidos ao longo do tempo por meio do manejo adequado do fogo e de resíduos, propiciando o acúmulo de matéria orgânica“, detalha Carolina Levis. “A composição tão rica da floresta nesses nichos é o resultado entre o manejo empreendido pelos povos indígenas e a ação dos microrganismos ali presentes.”
Outra evidência é o conhecimento botânico das populações originárias sul-americanas: mais de 6,2 mil espécies de plantas têm uso descrito por esses povos para a culinária, a medicina, a confecção de materiais e abrigos, bem como práticas religiosas. O cultivo das espécies utilizadas é essencial para a biodiversidade local. No entanto, a pesquisa alerta que o desaparecimento de línguas nativas e o avanço do desmatamento põem em risco esses saberes.
Como a relação entre cultura e natureza é inseparável e permeada por conhecimentos aprimorados, passados de geração a geração, é nesse contexto em que surgem os “pontos de esperança” descritos pelo estudo.
Na prática, seriam áreas que podem impactar significativamente a resiliência socioecológica; onde o conhecimento e o engajamento de comunidades locais se aliam à ciência, engenharia e tecnologia para promover a conservação ambiental. Ou seja, contribuem para a conservação de espécies ameaçadas e aumentam a capacidade de adaptação e transformação de um sistema frente a ameaças, garantindo estabilidade para esse vínculo entre natureza, povos e cultura.
Um dos exemplos citados é uma área no Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso, região no arco do desmatamento da Amazônia e, portanto, uma das mais ameaçadas. Devido à supressão da vegetação nativa para fins agropecuários, menos de 20% da região se encontra preservada. Os territórios indígenas no Xingu formam verdadeiras ilhas verdes em meio à destruição e abrigam mais de 7 mil brasileiros de 16 grupos étnicos, como os Kuikuro, os Aweti e os Mehinako.
Uma aliança entre pesquisadores indígenas, não indígenas e estrangeiros deu vida, em 2017, ao Portal ArcGIS da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu. Mantido e administrado também pelos moradores locais, o site documenta a rica tradição Kuikuro e funciona como um sistema de monitoramento por GPS. Qualquer ameaça pode ser informada com precisão, como a ocorrência de queimadas. “Na pandemia, essa tecnologia foi importante para a notificação de pessoas contaminadas”, relembra Levis.
Outro exemplo listado pelo artigo é a preservação do gigante pirarucu (Arapaima gigas), o maior peixe de água doce do mundo. Importante para as culturas amazonenses, a espécie vem sofrendo sobrepesca nas últimas décadas. Na bacia amazônica, pescadores, cientistas e ONGs implementaram um modelo colaborativo de manejo que aumentou a população do peixe. Em lagos protegidos e supervisionados no rio Juruá, por exemplo, o número de indivíduos chega a ser 425% maior quando comparado a áreas sem a atuação da população, relata um artigo de 2019 publicado na revista Freshwater Biology.
“Essa estratégia envolve a contagem visual da espécie pelos pescadores em determinados lagos, que atuam como uma reserva e ajudam a determinar uma cota para a pesca. Todos esses dados são inseridos num protocolo desenvolvido pelos moradores junto a pesquisadores”, explica Levis. Além de garantir a proteção ao pirarucu, a iniciativa deu retorno financeiro às famílias e facilitou a inclusão de mulheres nos processos de decisão.
Para garantir a perpetuidade desses e de outros potenciais pontos de esperança mencionados no artigo, bem como a construção de novos projetos, oito princípios entram em jogo. A combinação entre dois ou mais deles ajuda a sedimentar o sucesso. Por exemplo, o reconhecimento e respeito às regras e práticas do conhecimento tradicional, o estímulo à participação de moradores para ações de monitoramento e vigilância em seus territórios, o cuidado de espécies em situação de vulnerabilidade ecológica, a garantia aos direitos territoriais, os apoios financeiro e governamental, bem como parcerias entre indígenas e não indígenas.
“É fundamental que existam parcerias entre comunidades indígenas e locais, universidades, empresas e entidades governamentais, num modelo de governança policêntrico, ou seja, com vários tomadores de decisão. Além disso, precisamos de ainda mais estudos para detalhar a ameaça das mudanças climáticas a esses sistemas”, alerta a bióloga.
O escritor indígena Ailton Krenak, o mais recente imortal da Academia Brasileira de Letras, afirmou que cada “povo indígena tem um jeito de pensar, um jeito de viver, tem condições fundamentais para a sua existência”. A frase, dita num discurso da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, em Brasília, materializa parte do que o novo estudo mostra: temos muito a aprender com os povos originários.
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