MPF quer emitir ‘Declaração de Reconhecimento de Limites’ para conter invasão em terras indígenas

Prevfogo atando no Amazonas (Gustavo Basso/NurPhoto)

Carolina Givoni – Da Revista Cenarium*

MANAUS – Uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) nesta terça-feira, 30, pede a suspensão dos efeitos da Instrução Normativa (IN) nº 9/2020 da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Amazonas, para garantir a manutenção ou inclusão de todas as terras indígenas do estado, mesmo que os processos de demarcação das áreas ainda não estejam concluídos no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).

NA ACP apresentada à Justiça Federal contra a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para assegurar que as terras indígenas em processo de demarcação, ainda não homologadas, sejam consideradas no procedimento de análise de sobreposição realizada no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) e para a emissão da ‘Declaração de Reconhecimento de Limites’, impedindo que sejam apropriadas por particulares.

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A IN nº 9/2020 publicada em 22 de abril deste ano, define que “a Declaração de Reconhecimento de Limites se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas”.

Com esta redação a instrução normativa, reduziu as hipóteses para as quais não caberia a emissão de ato administrativo de reconhecimento de limites, excluindo as terras indígenas em processo de demarcação. A Instrução Normativa nº 3/2012, em vigor antes da IN nº 9/2020, previa que “o Atestado Administrativo se destina a atestar a situação geográfica de imóveis de terceiros em relação às terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação”.

O MPF explica na ação que o processo de demarcação de terras indígenas é complexo e, geralmente, demorado, destacando que o atestado administrativo era um dos instrumentos disponíveis para minimizar os conflitos fundiários que surgem ao longo dos anos de trâmite do procedimento.

No Amazonas a Funai informou que há 28 terras indígenas que podem ser ocultadas no Sigef em decorrência da IN nº 9/2020, em estudo, delimitadas ou declaradas. Há, ainda, outras 184 áreas reivindicadas, que estão em fase de qualificação, ou seja, seus estudos sequer foram iniciados e não há previsão para seu início, além da terra indígena Jacareúba/Katauixi, em estudo para restrição de uso por indígenas isolados.

Etapas da demarcação

As terras indígenas em processo de demarcação são aquelas não regularizadas e as que ainda não tiveram seus limites homologados por decreto presidencial.

Ao longo do procedimento de demarcação, as áreas passam pelas diferentes etapas: ‘em qualificação’, que inicia o processo de demarcação, com a apresentação formal da reivindicação pela comunidade indígena; ‘em estudo’, marcada pela constituição de grupo de trabalho para realização de estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, enviados à presidência da Funai para aprovação.

Já as ‘delimitadas’ com estudos aprovados pela Funai e publicados em Diário Oficial, em fase de contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça; ‘declaradas’, já autorizadas para serem demarcadas fisicamente a partir de portaria do ministro da Justiça; ‘homologadas’, que já possuem limites materializados e georreferenciados, homologada por decreto presidencial; e ‘regularizadas’, quando, após a homologação, já há registro em cartório em nome da União e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

Há, ainda, as chamadas áreas interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, que visam proteger os territórios de perambulação de povos indígenas em isolamento voluntário (isolados).

Pela IN nº 9/2020, somente a partir da homologação é que as terras indígenas passam a constar no Sigef. “Em outras palavras, a IN FUNAI nº 9/2020 viola a publicidade e a segurança jurídica ao desconsiderar por completo terras indígenas delimitadas, declaradas e demarcadas fisicamente, além das terras indígenas interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de povos indígenas em isolamento voluntário”, afirma o MPF na ação civil pública.

O MPF pede que a Justiça Federal determine, em caráter liminar, que a Funai mantenha ou inclua no Sigef e no Sicar, em 24 horas, as terras indígenas do Amazonas em processo de demarcação, sob pena de multa diária de R$ 100 mil.

Também foi determinado à Funai e ao Incra que levem em consideração as terras indígenas em processo de demarcação em análises de sobreposição de terras, sob pena de multa de R$ 500 mil por procedimento descumprido. Entre os pedidos está ainda a declaração de nulidade da IN nº 9/2020, de forma incidental.

A ação aguarda julgamento na 1ª Vara Federal no Amazonas, sob o nº 1010497-93.2020.4.01.3200.

Incentivo a grilagem e conflitos fundiários 

Conforme o MPF a nova norma da Funai contraria o direito dos indígenas às suas terras, e a natureza declaratória do ato de demarcação e cria uma precedência indevida da propriedade privada sobre as terras indígenas, contrariando o artigo 231, parágrafo 6º, da Constituição Federal, que se aplica mesmo aos territórios não demarcados.

Na ação o MPF ressalta ainda que a IN nº 9/2020 viola normas internacionais, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas e as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

“Além de não ter passado por processo de consulta prévia, livre e informada com os povos indígenas interessados, a IN viola os princípios da publicidade e da legalidade e representa indevido retrocesso na proteção socioambiental, incentivando a grilagem de terras e os conflitos fundiários”, destaca.

Ao possibilitar a grilagem de terras indígenas, a norma não apenas cria, mas também agrava conflitos fundiários e danos socioambientais já existentes, além de deixar os territórios e seus recursos expostos a exploradores ilegais.

Os riscos de conflitos fundiários, de acordo com o MPF, são gravemente ampliados pela norma, aumentando sensivelmente a vulnerabilidade dos povos indígenas neste momento de crise sanitária em razão da pandemia de covid-19.

Cerca de um ano antes da edição da IN nº 9/2020, o Incra propôs à Funai que, na análise dos requerimentos de certificação de imóveis rurais, fossem consideradas apenas as sobreposições totais ou parciais de imóveis rurais com terras indígenas homologadas e/ou regularizadas, desconsiderando as áreas reivindicadas, interditadas e em processo de demarcação.

Em resposta ao Incra, a Funai emitiu a Informação Técnica nº 26/2019, rechaçando a proposta. “Agora, porém, mesmo após manifestação técnica do órgão, corroborada pela sua Procuradoria Federal Especializada, a Funai ignora seu próprio posicionamento, em evidente alinhamento com a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e prejuízo das populações indígenas, dado o indiscutível desvio de finalidade no desempenho de suas atribuições institucionais”, afirma o MPF na ação civil pública.

(*) Com informações da MPF

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