Na França, população sem casa sobe 150% em uma década

Número dos sem domicílio chega a 330 mil, mas outros 1,098 milhão de franceses e imigrantes vivem de forma coletiva ou em alojamentos (Anna Margueritat/AFP)
Da Revista Cenarium*

PARIS (FR) – O número de pessoas sem domicílio na França mais que dobrou na última década, passando de 133 mil para 330 mil, segundo a Fundação Abbé Pierre. A contagem sobe se incluídos os indivíduos sem moradia pessoal, hospedados por terceiros ou em um alojamento provisório: 1,098 milhão. Quando se acrescentam os franceses morando em “condições muito difíceis”, chega-se a 4,148 milhões.

O diagnóstico da entidade — fundada em 1992 pela luta do direito à habitação — alertou para o agravamento das dificuldades na busca por um teto no País, tanto para a população de baixa renda ou em situação precária, incluídos desempregados e imigrantes, como para uma classe média com perda de poder aquisitivo face ao crescente valor dos aluguéis.

O relatório destaca uma série de fatores para o agravamento da situação de moradia na França: uma conjuntura inóspita após a pandemia da Covid-19, a retomada da inflação em 2022 e a emergência de uma crise energética no rastro da guerra na Ucrânia. E, além disso, a fundação indica a ineficiência dos poderes públicos em enfrentar o problema dos sem-teto e a precariedade habitacional, piorando a situação.

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A sexta edição da “Noite da solidariedade” — operação para ajudar pessoas sem abrigo, realizada em Paris e em 27 municípios dos arredores — realizada dia 26 de janeiro, contabilizou 6.633 pessoas vivendo nas ruas. Só na capital francesa, o número chegou a 3.015 sem-teto, contra 2.598 em 2022, sendo 105 menores de idade. O vice-prefeito de Paris, Emmanuel Grégoire, reconheceu o ineditismo de um número “tão importante de crianças”, em um quadro considerado por ele “excepcional e preocupante”.

O número de telefone 115, principal dispositivo de urgência da “rede de segurança” do serviço público, recebe milhares de ligações, todos os dias, de pessoas à procura de uma vaga em um dos centros de acolhimento ou de um dos quartos reservados para sem-teto em determinados hotéis. Os números são “terríveis”, aponta a Fundação Abbé Pierre. Só na noite de 5 de dezembro de 2022, em Paris, 122 crianças de menos de 3 anos não conseguiram um lugar para dormir com o serviço público em Paris. Nessa mesma data, segundo a Federação dos Agentes da Solidariedade (FAS), cerca de 5 mil pessoas que telefonaram para o 115, em âmbito nacional, não encontraram uma solução de pernoite, sendo 1.346 crianças.

2,3 milhões na espera

Para o sociólogo Christophe Robert, coordenador do relatório da Fundação Abbé Pierre, situações como essa são “bastante tensas” em grandes cidades como Paris, Marselha, Lyon, Lille, Montpellier ou Toulouse.

“Muitos nem ligam mais para o serviço, pois, além do longo tempo em espera, sabem que não terão uma resposta positiva. Mas só aumentar o número de alojamentos de urgência não será suficiente, e enquanto não houver uma conscientização disso, não se resolverá o problema”, sustenta.

Robert refere-se a políticas públicas e medidas legislativas que abordem os diferentes ângulos da questão dos sem domicílio na França. Como uma solução mais “duradoura”, defende um reforço no investimento nas Habitações de Aluguel Moderado, os chamados HLM, na sigla em francês, moradias sociais construídas com a ajuda do Estado, de valores de aluguel bem abaixo do mercado e estritas regras de acesso.

“A construção dos alojamentos sociais caiu muito nos últimos anos”, constata o sociólogo. “Há dois anos ficamos abaixo de 100 mil novas habitações por ano, antes, este número era de cerca de 120 mil, e chegamos a atingir 135 mil. É um quadro que nos inquieta muito quando vemos que há em torno de 2,3 milhões de candidatos.

Para Didier Vanoni, diretor do Fors-Pesquisa Social — organismo independente especializado na avaliação das políticas públicas — nos últimos anos houve um desmoronamento de um sistema que, cada vez, perde mais sua pertinência:

“A estrutura HLM se enfraqueceu. O 115 está saturado. Há o fluxo migratório. É preciso haver mais auxílios para as pessoas em situação de subemprego. Os salários estão completamente desconectados dos valores de aluguel do mercado, exceto para os 20% mais ricos e aqueles que herdaram um apartamento de família ou usufruem de uma locação antiga. Hoje, mesmo as classes médias têm dificuldades em alugar um imóvel.

O relatório estuda o perfil das famílias francesas para ampliar esta análise.

“Quem tem renda inferior à metade da média dos franceses não tem chance. E quando tem, se vê bloqueado ao se acrescentar os custos de eletricidade, seguro ou transporte. A questão é fazer com que as evoluções do poder aquisitivo e do valor dos aluguéis acabem se encontrando”, diz Vanoni.

Existe uma regra implícita na França adotada pelos proprietários que desejam alugar seu imóvel: o salário do locatário deve ser, pelo menos, três vezes maior do que o valor do aluguel. Trata-se de uma norma de prudência que na origem não é ruim, nota Robert, pois se essa proporção for ultrapassada, poderão faltar recursos para alimentação, saúde e aquecimento.

“Em 1990, o aluguel representava 20% das despesas de um francês, contra 27,8% em 2021. E isso é uma média, pois, para muitos o índice chega a 40% ou mesmo 60%.

Limite ao AirBnb

O relatório sugere, entre as medidas, até a limitação ou o fim das vantagens fiscais para plataformas de locação turística tipo AirBnb. O estudo tem, ainda, um capítulo dedicado às desigualdades e discriminações relacionadas ao gênero na questão da moradia, focado no âmbito das mulheres. Problemas são detectados para as pessoas LGBTQIAP+, mas, segundo a fundação, as maiores adversidades concernem as mães solo.

“As mulheres ganham em média um salário entre 20% a 22% inferior aos dos homens”, diz Robert. “E a situação mais difícil que vimos nesse relatório foi a de mulheres solo com filhos. Elas são duas vezes mais atingidas pelo problema de habitação do que os homens. Com um filho, 40% delas têm dificuldades em encontrar moradia, contra 20% para o conjunto da população. Mas se têm dois ou mais filhos, este índice sobe para 60%. É um grande problema”.

Numa separação conjugal — cerca de 420 mil por ano na França — a capacidade financeira das mulheres diminui em média de 13% a 14%, enquanto a dos homens aumenta de 3,5%, aponta o relatório.

“Para muitas mulheres, essa perda chega a mais de 40%”, acrescenta Robert. “E as pensões de aposentadoria são inferiores em 40% paras as viúvas em comparação aos viúvos. Há, hoje, cerca de 500 mil aposentadas, sós, afetadas pela crise da habitação. O número de mulheres nas ruas, sem teto, embora ainda inferior ao dos homens, infelizmente, não cessa de aumentar, como o das crianças.

(*) Com informações do Infoglobo
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