‘Nunca senti uma angústia cívica tão profunda’, diz atriz Marieta Severo

Atriz Marieta Severo (Foto: LEO AVERSA / Agência O Globo)

Com informações do O Globo

SÃO PAULO (SP) – Marieta Severo estranha quando se olha no espelho. Ainda não se acostumou com os cabelos brancos. Mas está “felicíssima” após passar quase 30 de seus 74 anos retocando os fios com tinta escura. A pandemia a libertou (“eu e a um monte de mulheres, o que é maravilhoso!”). Quem dá de cara com a atriz pessoalmente tem a impressão de que ela nasceu para o novo penteado. Ele contrasta com a pele morena e coroa a elegância de seu corpo esguio dentro da roupa preta.

Mas é pela tela do Zoom que a atriz desanda a falar, emendando um assunto no outro com a urgência de quem está entalada. “Todo mundo está com gritos parados na garganta, né? Ou berrando mesmo” — analisa a atriz, que define os últimos dois anos como “os mais difíceis da minha vida”.

Os motivos vêm do micro e do macro, como ela diz. Em junho do ano passado, Aderbal Freire-Filho, seu companheiro há quase 20 anos, sofreu um AVC. Os dois viviam um casamento em lares separados, mas depois do episódio, Marieta o acolheu. É na casa dela, em meio a um esquema hospitalar, que o diretor teatral encara, consciente, a batalha para recobrar os movimentos (“acredito que ele vai conseguir recuperar algo da vida dele e da nossa”).

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O medo da morte ficou ainda mais concreto quando a atriz contraiu Covid-19, em dezembro. Ficou internada a poucos metros do marido, no mesmo hospital. Diante do diagnóstico de quase 50% do pulmão comprometido, perguntou ao médico: “Vou ser intubada e morrer?”. Felizmente, escapou dessa. Mas a dor de ver o parceiro impossibilitado de exercer plenamente sua capacidade intelectual e o espírito combativo que marca sua personalidade, é um duro golpe para a Marieta, que credita à atual situação política do país outra razão pela qual tem sido tomada por um baixo-astral constante.

“Nunca senti uma angústia cívica tão profunda, apesar de ser de uma geração que viveu a ditadura. Sei o que é ter uma barreira diante dos sonhos, do melhor do país, impedindo a gente de florescer em plena juventude. Aqueles tanques na rua (refere-se ao desfile de blindados realizado em Brasília dias atrás)… Como alguém defende um regime que coloca um cano de descarga na boca de um jovem, arrastado em um quartel?” diz a atriz, com a voz embargada, ao lembrar o assassinato de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, que era sua amiga.

“Não acho que exista clima ou conjuntura internacional para um golpe, mas está tudo preparado para isso. Sou gata escaldada, né? Ter que voltar a lidar com esse medo é assustador. Essa ideologia que está dominando não só o Brasil, mas vários lugares, o desmonte das nossas conquistas, o retrocesso dos direitos trabalhistas, tudo que está sendo feito por debaixo do panos…”

O cerceamento à liberdade artística também é motivo de alerta. A atriz enxerga um projeto ideológico em andamento que “não acredita na democracia e quer asfixiar a liberdade de expressão”, secando verbas para projetos que não sigam a cartilha do governo.

“O que vão permitir que se filme, arte sacra? A gente se perde diante dos absurdos. O que estará tramando Damares? Um negro que demoniza negros na Fundação Palmares. Pessoas são escolhidas pelo viés ideológico e não pela capacidade de ocupar cargos. O país está desmoronando por dentro” afirma, criticando ainda a conduta do presidente na pandemia. “Senti inveja de países que lidaram com a desgraça de forma, responsável, com orientações precisas e não com o uso político da tragédia. Esse acréscimo de desespero é imperdoável, matou muita gente.”

Marieta Severo e o marido, Aderbal Freire-Filho (Foto: Cristina Granato)

‘Precisava ter o impulso de mudar o mundo’, diz Marieta

Para Marieta, é impossível assistir a tudo isso calada. Ela, no entanto, não se sente no direito de cobrar posicionamento de ninguém.

“O princípio da minha vida é a liberdade individual. Cada um se manifesta como quer, com sua consciência. Se quiser usar a voz só em sua música, é um direito. Também tem gente que não está se manifestando porque concorda — acredita. — Acho que quanto maior a consciência de como a política está impregnada em nossas vidas, melhor para a coletividade. Sou de uma geração que nunca se furtou a se posicionar. Cada trabalho que escolhi tinha uma uma intenção, eu precisava ter dentro de mim o impulso de mudar o mundo.”

Esse impulso permanece vivo em Marieta, tanto no Teatro Poeira, que mantém em Botafogo, quanto em Dona Noca, personagem que encarna em “Um lugar ao sol”, novela em fase de gravação. No mais, ela trava a luta diária contra o abatimento armada de seu famoso bom humor.

“Tenho que viver muito para ver a virada do Brasil na direção do país que a gente sabe que ele é. Por isso, faço muita ginástica para ficar saudável”, brinca. “Acho que quanto mais as forças contrárias tentam, os melhores pensamentos também se reforçam. Não adianta reprimir homossexual, ser racista, violento. O caldeirão vai ficando mais denso e vem à tona. O ser humano quer ser livre. Quem quer ser sufocado, que se sufoque. Reprima seu filho, bote ele de azul, a filha, de rosa… Mas não vem impor isso como regra a um país.”

Na busca pela alegria, a família é fonte certa. Os encontros que reúnem as três filhas e os sete netos funcionam como um alimento para a alma. Neles, Marieta baba diante do neto mais velho, Chico Brown, tocando piano, ou Lia, filha de Luísa, na flauta.

“É uma família musical, estou querendo ver quem vem para o palco”, provoca Marieta, que conta aprender sobre a pauta contemporânea com as meninas. “Minhas netas estão dando um banho no que se refere à consciência de gênero, de raça e da situação econômica do país. Por isso, repito: não adianta querer segurar as rédeas do mundo.”

Mas Marieta, sobretudo, ensina, como conta a neta Irene, de 15 anos, filha de Silvia. “Minha avó me ensina a ser justa e a seguir a vida com calma quando as coisas não estão tão tranquilas assim. Quando ela diz que vai dar certo, eu sei que vai.”

‘Resgato minha humanidade através da ficção’

Além da família, a ficção salva Marieta Severo. É  na pele de Dona Noca, a cozinheira batalhadora e cheia de jogo de cintura que ela interpreta na próxima novela das 9, “Um lugar ao sol”, que a atriz tem encontrado ânimo para seguir.

“É o personagem mais positivo que já fiz. Ela tem muita sabedoria de vida. Superou momentos difíceis e os transformou em coisas construtivas. Às vezes, estou com uma questão grave, leio o texto e penso: “Que danada! Que bacana o que ela pensou diante disso”. Dona Noca sempre me resgata”, conta Marieta, que recentemente protagonizou o delicado filme “Noites de alface”, de Zeca Ferreira.

Além de valores comunitários, o longa também fala sobre perdas e de envelhecimento, assunto com o qual Marieta tem uma maneira própria de lidar.

“Sempre tive a tendência de achar que o momento em que estou é melhor. Que para frente só vai ficar pior (risos). Também acho que, em cada idade, você tem todas as outras. Quando é jovem, tem momentos de velhice, de desânimo. Há dias em que estou com 20 ou 30, em outros, com 90″, brinca ela que, a partir de amanhã, volta a protagonizar cenas sexys na reprise de “Verdades secretas”. 

A amoral e inescrupulosa Fanny, personagem da atriz na série, marcou uma virada na carreira de Marieta, que havia passado 14 anos pele da Dona Nenê de “A grande família”.

“Fanny era tudo que eu precisava. Acho que o público tinha esquecido que eu era uma atriz fazendo a Dona Nenê. Virei a própria. Mas, agora, vamos ver como esse Brasil mais careta e conservador vai reagir… Porque tem todo um erotismo, uma sexualidade…”

Outra motivação que leva Marieta adiante são os 17 anos do Teatro Poeira e do Poeirinha, as salas dela e de Andréa Beltrão. As duas, junto com Aderbal, tinham programado a comemoração dos 15 anos dos teatros, mas aí veio a pandemia… A data será comemorada em janeiro, com a reabertura das salas e uma exposição que celebra a memória do teatro a as peças que passaram por lá,  com curadoria de Bia Lessa.

“Será uma grande comemoração, a gente está precisando. É quase que nos festejar também. Apesar desse olhar malévolo que estão tentando colocar sobre o mundo artístico, o  ser humano não vive sem a ate. Isso ficou ainda mais claro na pandemia”, lembra Marieta. “Eu resgato a minha humanidade através da ficção, da Noca, do Poeira. Isso me alimenta, me faz sobreviver.”

Amiga e parceira profissional mais constante, Andréa Beltrão é testemunha dessa garra. “Marieta vive o presente e constrói para o futuro sempre. Com força, alegria, doçura, firmeza, curiosidade, inquietação e amor. Ela é a amiga presente em todas as horas, minha vida se divide em antes e depois de Marieta”, derrete-se.

A importância de Marieta para o cinema nacional será lembrada pelo Inffinito Film Festival, que homenageará a atriz em sua próxima edição, em setembro. Uma mostra só com filmes estrelados pela artista, que tem 34 longas no currículo, será exibida no evento.

“Marieta representa a força do cinema brasileiro. A força da retomada, simbolizada com “Carlota Joaquina”, e também a força feminina, com papeis marcantes e potentes”, destaca Adriana L. Dutra, documentarista e diretora do festival.

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