O mito da Integração

Conta Platão, na obra O Banquete, que nos primórdios da humanidade, haviam três gêneros, os andróginos guardavam qualidades masculinas e femininas no mesmo ser. Achando-se, assim, perfeitos, desafiam os poderes de Zeus e este os separa ao meio, daí nasce a incompletude e a necessidade dos humanos, seus sucessores, em procurar eternamente a parte perdida. A luta da humanidade, atrelada ao mito, reflete essa busca desenfreada pela completude, em todos os níveis. O mito platônico da androginia guarda certa semelhança com o que vamos tratar.

A Baixa Idade Média forjou o mito de um Paraíso Perdido, o El Dorado, que existia fora dos limites do mundo conhecido pelos europeus e lá, como no mito da androginia platônica, tudo era perfeito. As ambições dos dois grandes impérios cristãos – Espanha (Castela) e Portugal, pela conquista desse novo mundo, levou o papado a separar o mundo novo, em tempos de descobertas, em duas partes, por um meridiano que ficou conhecido como Meridiano de Tordesilhas: as terras do Oeste para a Espanha e as do Leste para Portugal. Quando da “Descoberta da América” pelos europeus, a Bula Papal, em forma de tratado, fez passar pela América do Sul, à altura da hoje cidade de Belém do Pará, o tal meridiano virtual, traçado a 370 léguas de Cabo Verde, pelo papa, o representante de Deus na terra. O paraíso, que parecia perfeito, segundo as lendas, localizado na América do Sul, é partido ao meio.

A inocência e a completude deu lugar ao pecado original, às lutas entre as partes por uma busca de junção. Embora contestado pela Coroa Francesa, os dois países sustentaram o veredito papal até 1750, com o Tratado de Madri. Assim, no período colonial, o Estado do Brasil é o resultado da “descoberta”, da partilha de Tordesilhas, e a Amazônia, por inteiro, o resultado da “conquista”, da luta para conseguir a completude, a parte do paraíso, onde possivelmente estaria o El Dorado. Nessa versão, Portugal criou o Estado do Grão-Pará e Maranhão, ao lado um do outro, chamado Estado do Brasil, mas seguindo os passos de Zeus, separados.

PUBLICIDADE

O Império do Brasil, com truculência, retomou a conquista da Amazônia, por entender que seria esta a sua “cara-metade”, numa guerra cruel. Anexou-a para subjugá-la e, por isso, não a conquistou por completo. Para mantê-la perto de si, repaginou o “mito da androginia”, que consagra a perfeição, pelo “mito brasileiro da integração”. Integrar a Amazônia ao Brasil é uma utopia presente no imaginário do mandonismo político brasileiro e vem, atualmente, tornando-se uma distopia para os amazônidas.

A verdade é que, ao longo desses dois séculos de domínio, o Brasil ainda não sabe bem o que fazer com a Amazônia. Os milhares de brasileiros que aqui vivem importam pouco. “Integrar” é um termo autoritário, obsessivo; quando transformado em ação é predatório; e, como resultado, apresenta sempre um saldo negativo de regressão.

A ocupação dos postos públicos por aliados da “integração nacional” é necessária para colocar os planos de desenvolvimento impostos sem discussão adequada e necessária em marcha. Pergunta-se: o que vão fazer com a Zona Franca de Manaus quando os prepostos do capital vir a público para anunciar a inviabilidade do modelo? O que vão fazer com os caboclos e indígenas depois da descaracterização do seu sistema de cotas na UEA? Com quem ficarão as patentes dos princípios ativos e dos processos nas cadeias produtivas do que for descoberto pelo CBA, com recursos públicos? A quem entregarão a recuperação das áreas degradadas da Amazônia e com quais propósitos? Por que não devolvem o que levaram daqui? Falta projeto, falta discutir com quem de direito, falta cumprir a palavra, falta transparência!   

Darcy Ribeiro, figura ímpar da intelectualidade e da política, que criou os CIEPs, a UnB, reformulou várias universidades no mundo e fez tantas outras coisas, tinha um projeto para a Amazônia; era singelo, mas factual e exequível: reconhece que as coisas mais importantes da floresta são os povos indígenas e os caboclos, daí a ideia de “Comunidades Caboclas”, dotadas das condições necessárias para tornar rentável as coisas da floresta, voltadas para o desenvolvimento intelectual, científico e econômico do povo, tendo no centro comunal a Maloca do Saber, detalhada numa entrevista ao “O Globo”(18/02/97), um dia após a sua morte. Que pena!

(*) Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional, graduado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor emérito da Ufam.
PUBLICIDADE
(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.