O ÚLTIMO BIRIBÁ

Tinha crescido ali, bem em frente à janela que dava para o quintal da velha casa. Ninguém sabia dizer se tinha sido plantado ou se nascera ao Deus-dará, como os pés de chicória e de urtiga que, sem quê nem para quê, da noite para o dia ganhavam vida rente à cerca do quintal. Na verdade, não se sabia nem mesmo se ele tinha chegado antes ou depois da velha casa de madeira, que se equilibrava a um metro do chão sobre toras de acariquara.

Era frondoso, mas talvez não passasse de uns cinco metros. O que não tinha de altura, como os que habitavam os quintais da vizinhança, compensava com seus galhos, que brotavam em extensão e abundância de folhas, desde o tronco, e se espalhavam frente ao vão da janela, como uma cortina natural a oferecer sombra e frescor a quem estivesse no quarto. O fato é que aquele pé de biribá, de idade desconhecida, era um membro da família, tal o carinho e os cuidados que se dispensavam a ele.

E naqueles últimos meses, mais do que em outros tempos, sua intimidade com aquele velho pé de biribá tinha se estreitado como nunca. Bem diferente do tempo de menina e até adolescente, quando escalava os galhos densos em folhas, pelo puro prazer de pegar o fruto madurinho com as próprias mãos, parti-lo ao meio, deliciar-se com a polpa branca, saborosa e doce, e cuspir os caroços à distância, às vezes assustando de propósito algum irmão ou irmã que estivesse distraído no quintal e era atingido por aquele projétil. Mas aqueles tempos de peraltices, em que via o todo, sem se interessar pelos detalhes, tinham ficado para trás, eram só lembranças grudadas na memória.

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Foi quando Sofia percebeu, pela primeira vez, que as flores do biribazeiro brotam com a curiosa característica de sobreviverem tanto solitárias quanto aos pares. Foi quando, de olhos fechados, se deu conta de que, quando embaladas pelo vento, as folhas compridas do biribazeiro roçavam na parede de madeira em volta da janela do quarto e provocavam, num ritmo cadenciado, um som gostoso e preguiçoso que tão bem lhe afagava os ouvidos.

Foi quando, também, observou que todos os dias o biribazeiro recebia a visita de um passarinho vistoso, de peito amarelo, que parecia vestir uma casaca preta que se estendia até a ponta do rabo e trazia no centro da cabeça um detalhe também na cor amarela. Ele fazia questão de anunciar sua chegada com um assovio gracioso, repetido em três tempos, que parecia dizer vim-vim-vim. O interesse daquele passarinho era sempre algum biribá bem maduro, onde mergulhava seu bico sucessivas vezes e sucessivas vezes erguia a cabecinha cantando, como se comemorasse o sabor daquela deliciosa conquista. Mas a presença do vim-vim-vim também lhe trazia um raro momento de conforto e alento. Era como se aquelas visitas diárias fossem feitas para ela, que prendia as mãos nos punhos da rede, erguia a cabeça com esforço e acompanhava os movimentos do passarinho com o olhar atento e um discreto sorriso, como se a canção que ele entoava também tivesse sido composta exclusivamente para ela.

Deu-se, então, que, certo dia, o vim-vim-vim não apareceu para sua visita diária, embora o biribazeiro estivesse carregado e ostentasse fartura como nunca. Era final de maio. Em sua última safra da temporada, os biribás, amarelinhos e apetitosos, mostravam-se por inteiro aos olhos de quem quisesse ver. Sofia ficou um pouco triste com aquela ausência, mas resolveu lhe dar o benefício da dúvida. Só podia ter acontecido algum imprevisto para o vim-vim-vim ignorar aquela fartura. Enquanto isso, de sua rede, com a cabeça apoiada em um travesseiro e a mente cansada da doença que aos poucos lhe consumia, fazia esforço para contar os biribás, mas se perdia no meio do caminho. A concentração lhe fugia ao controle. Além disso, eram muitos biribás, todos amarelinhos, e alguns se escondiam por trás das folhas que davam para o quintal.

No dia seguinte, o vim-vim-vim também não deu as caras. No outro dia, também não. E os dias foram se passando impiedosamente sem a presença daquela figurinha animada que, com sua simplicidade e com seu canto em três tempos, lhe davam alguma alegria e conforto. Absorta, pois, na ausência do passarinho, por quem tinha se apegado como a um ente da família, só então Sofia começou a perceber certo dia que os biribás, de tão maduros e a passar do ponto, estavam caindo com razoável velocidade. Como já não fossem tantos, de sua rede ela passou a fazer uma contabilidade diária das frutas desaparecidas. E nada do vim-vim-vim dar o ar de sua graça. Foi quando veio uma descoberta que ela não queria ter descoberto. Sofia notou que, à medida que os biribás sumiam dos galhos, ela se sentia mais debilitada, como se cada fruta que se desprendesse da árvore devorasse um pouco da vida que lhe restava. Mas não entrou em pânico. Fechou-se em resiliência. Já há algum tempo trabalhava com o fato de que sua passagem pela vida não ia muito longe.

Era um sábado. A janela estava, como sempre, aberta. Os últimos raios de sol tinham sumido por trás do biribazeiro, apagando os movimentos animados das sombras dos galhos que dançavam alegres na parede do quarto. Uma névoa fina começou aos poucos a se alojar por entre as folhas, que, acariciadas por uma fina brisa que soprava mansa naquele fim de tarde, roçavam contra a parede e provocavam um barulhinho monocórdico. A noite começava sua jornada.

Estirada em sua rede, Sofia olhava fixamente para o alto. Ocupava-se em observar os minguados e derradeiros feixes de luz do dia que insistiam em invadir o quarto, aproveitando-se das brechas no zinco do teto. Sentia-se fraca, como se algumas partes de seu corpo já não atendessem à sua vontade. Deve ser a despedida, pensou ela, ao mesmo tempo em que dirigiu os olhos com as pálpebras já pesadas em direção à janela e, inevitavelmente, ao biribazeiro. Estranha coincidência. Um biribá, apenas um, de casca bem amarelinha, resistia preso a um galho que invadira o quarto no canto inferior esquerdo da janela. Foi inevitável a associação. Quando o último biribá escapar daquele galho, naquela noite, escapará também meu derradeiro sopro de vida, balbuciou Sofia a si mesma. E, dominada pelo cansaço e pela fraqueza, acomodou o rosto no travesseiro e se entregou ao sono sem qualquer resistência.

Acordou de manhã achando-se estranha. Olhava para si, para seus braços, para suas mãos; afagou seu rosto, acariciou seus cabelos e, com ar de espanto, esquadrinhou detidamente cada detalhe do quarto, a ver se tudo era real. Aquele início de dia estava radiante. Os raios de sol abraçavam o biribazeiro por inteiro e aproveitavam qualquer brecha entre os galhos e as folhas para espalhar um pouco de luz no quarto. De repente, Sofia estendeu o seu olhar ainda um pouco cansado em direção à janela e seu rosto foi lentamente se contraindo até resultar num sorriso que, mesmo contido, via-se que estava carregado de emoção. O último biribá, que resistira à noite inteira, continuava preso ao galho e, agora, repousava sobre o parapeito da janela, como a se oferecer à Sofia.

Ao longe, vindo de uma outra árvore no quintal, Sofia ouviu um canto de pássaro que lhe pareceu familiar. Depois de apurar bem os ouvidos, um outro sorriso, dessa vez mais largo e pleno de vida, se estampou em seu rosto. Era o canto em três movimentos do vim-vim-vim.

(*) Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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