Povo Kokama usa jogos da seleção brasileira na Copa como forma de união da comunidade

A Kokama Jardeline dos Santos brinca com um sobrinho no intervalo da partida do Brasil (Michael Dantas/Folhapress)
Da Revista Cenarium*

MANAUS – Os Kokama do Brasileirinho, em Manaus, enxergaram o aprendizado da língua indígena como uma forma de união da comunidade. Presentes ao longo de todo o Rio Solimões, esses indígenas sofreram históricos processos de expulsão e dispersão. Viraram migrantes e buscaram as franjas das cidades como forma de sobrevivência.

Desde o início da Copa do Mundo, a comunidade que sempre está na iminência de dispersão passou a ter um elemento a mais de coesão, os jogos da seleção brasileira.

No centro cultural da comunidade, chamado Uka Nuan (Casarão Grande), famílias Kokama se reúnem para torcer pelo Brasil. Foi assim na goleada em cima da Coreia do Sul na segunda-feira, 5.

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“Os jogos do Brasil se tornaram um movimento de fortalecimento da comunidade”, resume Gean Martinho dos Santos, 33, um dos professores de Kokama da comunidade. A outra professora é sua irmã, Jardeline dos Santos, 36.

“Quando tem jogo do Brasil é muito importante. É a hora de unir, de fortalecer nossa base”, diz Gean.

Os indígenas acompanham a partida de forma mais discreta e silenciosa, se comparados com outras torcidas. A calmaria é interrompida pelos gols.

Os Kokama se reúnem em comunidade, na periferia de Manaus, para assistir ao jogo do Brasil (Michael Dantas/Folhapress)

A comemoração de cada gol da seleção brasileira é feita com gritos, maracas e paus de chuva — um instrumento cilíndrico e comprido que funciona como um chocalho.

A Comunidade Nova Esperança Kokama existe desde 2005. Está na região do Brasileirinho, a uma hora do Centro de Manaus — ou mais, em dias de trânsito nervoso como os de jogo da seleção.

Quando surgiu, a comunidade chegou a ter 45 famílias. Divergências e o espírito migrante levaram a um relativo esvaziamento do lugar, com o surgimento de outras duas comunidades Kokama. Hoje, vivem no lugar 30 famílias.

As lideranças entenderam logo que era necessário resgatar a língua-mãe como forma de garantir uma unidade mínima da comunidade.

“Falar Kokama é uma necessidade para todo mundo aqui. A gente vive em aldeia”, afirma Gean.

A mãe dele, Maria do Perpétuo Socorro, 56, é a cacique de Nova Esperança. A história dela e de seus antepassados é a história do próprio lugar.

Os pais de Maria são de São Paulo de Olivença, no alto Solimões, uma região mais próxima da tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia. Passaram a migrar, primeiro para Tefé, já no médio Solimões, onde Maria nasceu.

Há 36 anos, quando Jardeline, a professora, era bebê, ela se mudou para Manaus. Viveu num bairro da periferia da cidade e nunca se adaptou – a capital amazonense é uma enorme mancha de concreto na floresta, pouco arborizada, com todos os problemas de uma grande e inchada cidade brasileira.

Um Kokama, dono de um sítio no Brasileirinho, doou as terras a famílias da mesma etnia que viviam na capital. O sítio é um respiro verde na cidade. Assim surgiu a Comunidade Nova Esperança Kokama.

A comunidade tem área verde, uma casa de farinha e uma tentativa de resgate das tradições Kokama, em especial, a língua. Mas falta espaço no lugar. E não há rio, marca das comunidades tradicionais.

“A vida dos Kokama é na beira do rio. E aqui não tem rio, nem igarapé. A água é de poço”, diz Maria. “Mas, na cidade, não me adaptei bem. É muito trânsito, muito barulho”.

O resgate pela língua mobiliza 50 alunos, adultos e crianças, de segunda a sexta. O trabalho dos dois professores é remunerado pelo município.

Manaus tem dez comunidades Kokama. A etnia está presente no cotidiano e na formação da cidade.

As comunidades fazem encontros periódicos na cidade, e é desses encontros que surgem cartilhas e material para o ensino da língua.

Jogadores do Brasil seguram uma faixa em homenagem ao ex-jogador Pelé após avançarem para as quartas de final (Chen Cheng/5.dez.22/Xinhua)

O futebol surgiu como mais um elemento agregador. Os encontros no centro cultural – um dos quatro da etnia na cidade – são tratados como uma festa no calendário da comunidade.

Para a transmissão das partidas, uma TV de um dos moradores é levada ao espaço coletivo. Parte das famílias se reúne para assistir aos jogos, mas ainda é minoria.

Alguns indígenas preferem assistir ao jogo em casa, com um peixe tambaqui na brasa. Outros não chegam do trabalho a tempo da transmissão.

Na Copa de 2018, a TV usada era mais simples, mas havia mais famílias reunidas. Os Kokama seguem se espalhando, e a língua e o futebol são tentativas de frear esse movimento.

Os jogos são usados ainda na campanha de arrecadação de Natal para as crianças da comunidade, com envio de vídeos e fotos pelo WhatsApp e nas redes sociais.

A família de Maria vem se mantendo na comunidade. Jardeline e Gean têm mais 12 irmãos. Dos 14, 12 seguem na Nova Esperança Kokama. Boa parte dos moradores trabalha como vendedores autônomos nas ruas de Manaus.

“Eu fui aluna de Kokama, meu irmão também. Minha mãe contava que havia proibição de se falar a língua. Agora, a gente ensina”, diz Jardeline.

Gean afirma que se sentiu bem quando aprendeu a língua. “Há aquela dúvida, aquele teste com a gente: ‘você é indígena? Então, fala alguma coisa’. Isso me motivou a aprender Kokama”.

Torcer pelo Brasil na Copa passou a ter uma função semelhante, de união e pertencimento. “É um momento cultural. Vemos o jogo juntos, colocamos a força para a seleção vencer e passamos energia”, diz Gean.

Os Kokama já têm um encontro certo no centro cultural da comunidade na próxima sexta-feira, 9, quando o Brasil enfrenta a Croácia nas quartas de final. E, se tudo der certo, os encontros prosseguem até a final.

(*) Com informações da Folhapress
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