Quilombolas do PA encaram viagem de até 12 horas de barco entre comunidade e cidade

Domingos Vieira da Cruz, quilombola da comunidade Mae Cué (Rubens Cavallari - 30.ago.23/Folhapress)
Da Revista Cenarium Amazônia*

MANAUS – Dentro de um barco pequeno, cerca de 50 pessoas aguardavam o horário de iniciar a viagem de volta para a comunidade Mae Cué. O trajeto entre o quilombo e a parte urbana da cidade durou cerca de 12 horas. O retorno levaria tempo parecido.

A embarcação estava estacionada na região onde está a orla do município de Oriximiná, no Pará.

“Para você ver a dificuldade que o quilombola passa. São 12, 13 horas de viagem. E a gente ainda tem que enfrentar o calor aqui dentro.”

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O lamento de Domingos Vieira da Cruz, 46, não era à toa. A temperatura estava alta, o termômetro marcava 36ºC no momento em que ele falava com a reportagem. A sensação térmica passava dos 42ºC.

Domingos Vieira da Cruz, quilombola da comunidade Mae Cué – Rubens Cavallari – 30.ago.23/Folhapress

Além de pequeno, o barco era fechado, com alguns poucos vãos ou ”janelas”. A capacidade de acomodar com conforto os passageiros já estava visivelmente ultrapassada. As dezenas de redes penduradas no interior da embarcação dificultavam a ventilação, aumentando o calor.

Deitados nas redes ou no chão estavam mulheres, homens, crianças e idosos. Todos da mesma comunidade. Dividiam espaço com diversas sacolas e caixas contendo os produtos que iriam levar para o quilombo. A alimentação de adultos e crianças também era feita de forma improvisada dentro do barco.

Juntando ida e volta são 24 horas navegando pelo rio Trombetas para ir até a parte urbana de Oriximiná e conseguir acessar serviços como supermercado, farmácia, banco, hospital, lojas de roupas.

“A gente vem uma vez por mês. Não dá para vir mais por conta da distância, mas a maioria desses serviços é só por aqui mesmo”, diz a quilombola Cleiane Ferreira dos Santos, 20.

A comunidade em que moram é uma das mais afastadas da região central de Oriximiná. O quilombo fica em uma área de floresta e o acesso é feito apenas de barco, pelo rio. Tem cerca de 60 famílias. Está perto do quilombo Cachoeira Porteira, um dos mais conhecidos da região, já na parte alta do rio Trombetas, onde fica boa parte das 37 comunidades quilombolas do município.

Uma das fontes de renda dos moradores de Mae Cué é o Bolsa Família. Este é mais um motivo que leva os adultos todos os meses a realizar a viagem, já que a única forma de receber o benefício é na parte urbana da cidade. Além disso, alguns quilombolas atuam na coleta das castanhas ou como pedreiros.

Na cidade, localizada no extremo norte do Brasil e que está perto da fronteira com o Suriname, vivem ao todo 9.924 quilombolas, segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse número representa quase 14% da população total de Oriximiná, que é de 68 mil pessoas.

“As comunidades mais distantes precisam lidar com as escalas dos barcos. Então eles vêm uma vez por mês na cidade. Muitos já tem seus barcos próprios, mas muitos ainda dependem do barco da comunidade que é de uso coletivo, uso geral”, diz Elielma de Jesus Pires, 43, da comunidade do Moura.

Segundo ela, que é uma das lideranças quilombolas de Oriximiná e coordenadora de mulher do território, a distância das comunidades em relação à parte urbana também prejudica a questão da educação.

“Hoje a gente tem a grande problemática com a questão de número de alunos”, afirma.

A quilombola diz que não é possível, por exemplo, colocar em uma sala de aula 30 alunos do primeiro ano, então existem estudantes do primeiro ano com alunos do segundo e do terceiro anos.

“Isso acaba complicando, porque tem que juntar esses alunos, essas turmas, e o professor tem que dar aula para a primeira, a segunda e a terceira série. Para gente isso é um ponto negativo, porque o professor tem que se desdobrar em três.”

Elielma faz parte da associação quilombola de Oriximiná e afirma que a entidade luta também pela implementação de um posto de saúde ambulante, já que as comunidades não possuem hospitais em seus territórios.

Caso uma pessoa fique doente, ela diz, precisa percorrer no mínimo 1h40 de barco até o local de atendimento. Isso no caso das comunidades mais próximas da parte urbana.

“A gente está na briga para que seja compensado, para que possa colocar isso como compensação, e não só como um acordo”, diz ela sobre o que considera responsabilidade da MRN, mineradora que explora bauxita na região quilombola.

Segundo ela, a empresa executa alguns projetos na comunidade, mas o modelo de acordo não dá garantias à população por se tratar de algo de caráter esporádico. A empresa faturou R$ 2,2 bilhões só em 2022 com a exploração do minério e repassou R$ 63 milhões como compensação para estado e prefeitura.

A mineradora afirma que já executa programas voltados à saúde quilombola e à educação da população.

Já a Prefeitura de Oriximiná diz que possui um programa de barqueiros, no qual quilombolas atuam levando crianças de barco para as escolas. Além do salários, a gestão municipal paga o diesel das embarcações e fornece diesel para as comunidades.

A prefeitura admite, entretanto, que não possui verba para assumir o transporte de toda a população quilombola da cidade. A gestão ressalta que o município é muito extenso, com grandes áreas de floresta, e que possui, além das dezenas de comunidades quilombolas, outras dezenas de comunidades indígenas, quase todas com acesso apenas via barco. A prefeitura diz gastar R$ 4 milhões com diesel por mês.

Carlos Printes, uma das lideranças quilombolas de Oriximiná, afirma que a distância só é um problema por causa da falta de infraestrutura.

“A gente não vê esse negócio de políticas públicas. É complicado aqui nas comunidades. O [quilombo] do Boa Vista, por exemplo, era para ser modelo, já que está do lado da mineradora. Era para ter um posto de saúde funcionando direitinho, que tivesse enfermeiro todos os dias e um médico uma ou duas vezes na semana. Mas não tem nada disso.”

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

(*) Com informações da Folhapress

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