A Amazônia nunca esteve vazia!

O professor Davi Avelino Leal estudou o período que antecedeu ao Estado Novo de Vargas, percorrendo a história das pequenas cidades, povoados e freguesias ao longo do Rio Madeira (Ricardo Oliveira/Cenarium)
Daniel Viegas*

MANAUS – A retórica de que a Amazônia é um “vazio demográfico” não é nova e, embora não guarde nenhuma relação com a verdade, continua sendo repetida constantemente, principalmente durante os períodos de governos autoritários. Getúlio Vargas, em 1940, em pleno período ditatorial do Estado Novo (1937-1945), proferiu seu “Discurso do Rio Amazonas” e afirmou que “conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta foram nossas tarefas. E, nessa luta, que já se estende por séculos, vamos obtendo vitória sobre vitória”.

Na ditadura civil-militar (1964-1985), o ditador Emílio Garratazu Médici cunhou a frase: “Uma terra sem homens para os homens sem terra”, para justificar uma política pública de espoliação territorial da floresta que culminou na morte de 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA), segundo a Comissão Nacional da Verdade.

A Amazônia nunca esteve vazia, ao contrário disso, esteve viva com uma imensa diversidade de povos e culturas, que tinham relações sociais e comerciais entre si e sempre resistiu aos invasores patrocinados pelo governo central. Pondo fim a esse senso comum, o professor Davi Avelino Leal realizou a pesquisa interdisciplinar “Mundos do Trabalho e Conflitos Sociais no Rio Madeira (1861-1932)”, que lhe rendeu o título de doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas e a publicação como livro pela editora Valer.

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Estudando o período que antecedeu ao Estado Novo de Vargas, o professor percorre a história das pequenas cidades, povoados e freguesias espalhadas pelas curvas do Rio Madeira e seus afluentes pelo período de 70 anos e observa que haviam acordos, estratégias, rupturas e violentos conflitos em reação às invasões territoriais dos povos e comunidades tradicionais.

A pesquisa revela como o projeto civilizatório de modernização conservadora engendrou um sistema social baseado no controle dos preços das mercadorias, sustentado sobre a cadeia do aviamento, que garantiam a imobilização da mão de obra e a exploração compulsória da sua força de trabalho, desenhando um quadro autoritário que, antes de ser econômico era social, mas não significou desenvolvimento nem a pacificação prometida.

O livro analisa, ainda, as notícias de jornais com relatos de ataques diários de Mura, Parintintin e Arara às freguesias, aos aldeamentos e às comunidades, anunciando o ataque de seringueiros e castanheiros contra os patrões, que revelam um padrão de resistência entabulado contra a exploração da força de trabalho e o esbulho do território.

O aumento expressivo da demanda pelo látex no mercado internacional influenciou diretamente nas estratégias patronais de imobilização nas forças de trabalho, dificultando inclusive manifestações de descontentamento por parte dos trabalhadores, principalmente os nordestinos empregados nessa atividade.

É o início da formação dos grandes latifundiários da Amazônia, já que a Constituição da República de 1891 havia transferido o domínio das terras devolutas aos Estados, que passaram a criar suas legislações fundiárias, permitindo aos governadores conceder grandes porções de terras através de Títulos Definitivos, que, ainda hoje, são usados para perpetrar grilagens rurais e urbanas.

O pesquisador observa que em regiões de fronteira, como a Amazônia do final do século XIX, o que estava em jogo não era nem a terra em si, mas os recursos naturais com valor de mercado. No caso, castanhais e seringais foram os principais alvos de interesses e causas dos conflitos no Rio Madeira.

Nesse contexto, em que a terra em si valia pouco e as estradas de borracha valiam muito, os conflitos e as lutas deram o tom das relações por quase 70 anos em que a extração da goma elástica e também da castanha concorreu no mercado internacional.

Nesse livro, o leitor terá em suas mãos, não apenas o produto de uma pesquisa científica densa e rigorosa, mas um texto leve e fluido, que nos permite romper com tantas falsas teorias repetidas e não comprovadas. Para além disso, o professor Davi Avelino nos conduz a refletir e comparar o que a Amazônia da passagem do Século XIX ao XX tem em com a do Século XXI, desde a retórica de um governo autoritário até os ataques aos povos e comunidades tradicionais na busca pela exploração dos recursos naturais.

“Corpos pintados e desenhos feitos com tinta de jenipapo e carvão de castanha queimada; na mão esquerda o arco e na direita as flechas afiadas com pontas de taquara. Entoando a canção guerreira marchavam para o enfrentamento. Eram os Kagwahiva-Parintintin preparados para o ataque. O alvo: a casa do seringalista José Francisco Monteiro, que se estabelecera há pouco tempo no Rio Baetas, afluente do Rio Madeira”. Que estratégia é essa? Quais as suas consequências para os povos indígenas e para os “moradores dos beiradões” do Rio Madeira? Em que momento esse processo encontrou o seu limite?

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