A ‘anestesia social’ transformou importunação sexual em algo ‘normal’ na sociedade brasileira

Após a eliminação de Guimê e Cara de Sapato, restou ao País debater os limites sobre a importunação sexual (Thiago Alencar/REVISTA CENARIUM)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – Após a eliminação, na noite de quinta-feira, 16, do lutador Cara de Sapato e MC Guimê, do BBB 23, por suspeita de importunação sexual contra a atriz Dania Mendez, o Brasil acordou no dia seguinte em meio ao constrangimento, mal-estar e indignação. Nas redes, houve uma profusão de debates sobre os limites das abordagens dos homens às mulheres e o sentimento de “culpa” expresso por Dania. A REVISTA CENARIUM entrevistou especialistas sobre a culpabilização que a vítima sente e o despertar da sociedade brasileira diante de um tema que não é de hoje.

As cenas, de Guimê passando a mão no corpo de Dania e de Cara de Sapato forçando um beijo e a aproximação física, causaram revolta nas redes e a TV Globo foi obrigada a se posicionar. Para a advogada Amanda Pinheiro, a culpabilização que Dania sentiu tem raízes.

“Analiso como consequência da educação patriarcal que é um mal universal, que objetifica o corpo feminino como meio de satisfação sexual e reprodutivo do gênero masculino, sem liberdade para manifestação de desejos e vontades. A violação do corpo feminino, sua intimidade como vimos no presente caso, traz à mulher todo esse contexto de cobrança e responsabilidade que teria dado causa a essa violação e não a avaliação da conduta do violador!”, condenou.

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Titular da Delegacia da Mulher em Manaus, Debora Mafra aponta que existe diferença entre carinho e importunação sexual (Reprodução/Redes Sociais)

Para a titular da Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM), Debora Mafra, existe diferença entre carinho e importunação. “O carinho é marcado por atos não lascivos e com respeito e já a importunação sexual são atos lascivos, sem o consentimento da vítima, como forma de satisfazer a lascívia do agressor”, explicou.

A delegada Debora Mafra comentou: “A polícia acolhe bem as vítimas de crimes sexuais, pois sempre estão bem fragilizadas. Quando ela não entende o que ocorreu, é explicado a ela, principalmente é perguntado a vítima se ela consentiu com o ato lascivo do agressor. As vítimas, muitas vezes se sentem culpadas pelo crime que ocorreu com elas, muitas vezes pelo ensinamentos machistas que culpam sempre a mulher pelo lugar que ela está ou a roupa que veste, mas devemos deixar bem claro, que a vítima nunca é culpada”, informou.

Anestesia social

A psicóloga Samiza Soares vê o “costume” como silenciador da violência. “Geralmente às vítimas não identificam o que sofreram como assédio/importunação, sentem anestesia social, como foi o caso da atriz Dania do BBB 23. A banalização e normalização da importunação sexual faz com que muitas mulheres não consigam identificar o ato como importunação sexual. Outras pensam que aquilo faz parte do jogo. Existe uma falta de consciência de que o comportamento mascarado como elogio ou cantada não é um mero constrangimento, é crime”, disparou.

Para Samiza Soares, a sociedade brasileira está deixando de viver uma “anestesia” diante da violência invasiva ao corpo feminino (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Para a profissional, a responsabilização pelo outro funciona como fator de retenção. “Há mulheres que deixam de denunciar porque têm medo de serem responsáveis pelo fim da carreira de um sujeito. Muitas pensam: ‘o sujeito tem família, carreira, eu vou destruir isso?’ E geralmente as vítimas são culpabilizadas: ‘por que entrou naquela sala à noite? Estava sozinha? Você não estava com uma saia curta?’ São perguntas ouvidas por mulheres que denunciam casos de importunação. É uma forma de perguntar: você não assumiu o risco?”, lamentou.

Culpa e medo

Para Samiza, culpa e medo são duas palavras que se coadunam no após o crime. “É um misto de sentimentos. Ela (a mulher) tem vergonha de ser exposta, medo de ninguém acreditar nela, de ser descredibilizada. Com isso, ela passa a se culpar pelo abuso, por não ter reagido, porque ter deixado aquilo acontecer”, resumiu. “Medo, culpa e falta de compreensão do crime são os principais motivos que levam as vítimas a ficar caladas. Além disso, muitas não querem reviver o trauma que passaram“, avaliou.

Para a advogada Amanda Pinheiro a culpa da mulher diante da importunação tem raízes no patriarcado, que é um mal universal (Reprodução/Redes Sociais)

Amanda Pinheiro completa contextualizando comportamentos parecidos ou com maior intensidade dos que aconteceram na casa do BBB 23, com a maioria da mulheres no Brasil. “É o que vemos rotineiramente acontecer em ônibus, metrôs e qualquer lugar em que a prática é cometida sem o consentimento da mulher, que na maioria dos casos é a vítima”, comentou. Para a advogada, o rumor do caso Dania só expôs algo “banal” no Brasil. “Tivemos exposto em rede nacional a cruel realidade enfrentada por mulheres desconhecidas”, constatou.

Em ônibus coletivos, metrôs ou mesmo em outros lugares públicos, as mulheres sentem o desconforto da importunação sexual (Reprodução/Internet)

Limites do desejo

A polêmica e os debates sobre o acorrido no BBB 23 fazem, na opinião de Samiza Soares, com que a sociedade brasileira desperte para novos comportamentos. “O flerte não precisa acabar, é verdade, mas está na hora de todos entenderem quando os limites do desejo e contato estão sendo extrapolados.
O grau de consciência do desrespeito em uma relação afetiva, sexual, profissional, na rua ou em casa tem a ver com nossa autoestima. Assim como a percepção, por parte do outro, de que está sendo inconveniente, desrespeitoso ou violento depende da forma como se situa em seus relacionamentos humanos, pessoais ou profissionais”, ponderou.

Ao final Samiza analisa. “Não podemos invadir o limite do outro, precisamos entender sinais corporais negativos e até os verbais. Desta forma não acontecerá uma invasão de limites. Somos homens e mulheres com desejos. Os impulsos sexuais não estão em nós como algo desconexo, mas dizem de nossa identidade. Diante de uma linda mulher, que chame sua atenção – sexualmente falando – você pode: a) olhar, desejar e trazer para sua mente como uma possibilidade de tocar, manipular e obter prazer! Ou: b) olhar, apreciar e trazer para sua mente como uma realidade de amar, valorizar e promover”, finalizou.

A delegada Mafra reforça a importância de denunciar os casos de violência. “Em caso de violência contra a mulher ligue: 180”. reforçou.

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