A discriminação de políticos

Segundo o cancioneiro popular a jabuticaba, isto é, a fruta da jabuticabeira, é iguaria da natureza que só encontramos no Brasil, é por assim dizer algo totalmente nosso, que nos identifica, que faz parte da nossa cultura, nosso “arche” , nosso algo único por excelência, sem igual em qualquer outro lugar do planeta, fruta pequena, de casca roxa, polpa branca, rica em ferro e vitaminas C, B, B2, B3 e carboidratos, nativa de nossa Mata Atlântica.

Pois bem, tal qual as jabuticabas, há em nosso País igualmente situações, fatos, questões e atos que são (penso eu) exclusivamente tupiniquins, é dizer, nossos por excelência, sem paralelo em qualquer multiuniverso pensado ou construído, não se encontrando tais manifestações em qualquer outro lugar do globo, são idiossincrasias totalmente verde-amarelo, tal qual o futebol e o samba.

Uma dessas idiossincrasias sem qualquer medo de errar se encontra também em nossa política, há aqui como não há alhures uma classe política que se distingue, infelizmente e em geral não pelo melhor dos motivos, inobstante, se distingue. Temos políticos oriundos de diversos extratos sociais, contudo, traço característico em comum dos mais expostos na mídia parece ser os seus encontros e desencontros com a lei, em grande parte investigados, réus, condenados e ex-condenados, privilégio este muitas vezes compartilhado com familiares e pessoas próximas.

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Quem sabe por conta desta circunstância tão peculiar tenhamos visto bem recentemente a aprovação em caráter de urgência pelo plenário da Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que torna crime a “discriminação de pessoas politicamente expostas”, aquelas que ocupam ou ocuparam cargos públicos ditos relevantes, conforme conceito próprio desta legislação, com posição de destaque no panorama nacional: parlamentares, detentores de mandatos eletivos do Poder Executivo, Ministros de Estado, membro de Tribunais, Governadores, Prefeitos e toda a sorte de políticos.

A autoria do projeto partiu da deputada federal Danielle Cunha (União – RJ), filha do ex-presidente da câmara cassado Eduardo Cunha, por 252 votos favoráveis a 163 contrários o texto aprovado na Câmara que agora segue ao Senado da República afirma que serão punidos na forma da lei “os crimes resultantes de discriminação cometidos em razão da condição de pessoa politicamente exposta, ou de pessoa que esteja respondendo à investigação preliminar, termo circunstanciado, inquérito ou qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, ou de pessoa que figura na posição de parte ré de processo judicial em curso”.

O projeto prevê pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa a quem negar a celebração ou a manutenção de contrato de abertura de conta-corrente, concessão de crédito ou de outro serviço a alguém por ser “pessoa politicamente exposta”. O texto estabelece ainda que a condição de pessoa exposta politicamente se mantém por cinco anos, contados da data em que deixou de figurar na função que lhe dava esse status, também ficam protegidas pela nova lei os familiares (cônjuge, companheiro(a), enteado(a)), estreitos colaboradores (assessores, funcionários) e as pessoas jurídicas das quais participe a pessoa politicamente exposta.

Ponto importante de notar que apesar de previsto no texto original foi retirada a parte relativa a previsão que tornaria crime “injuriar alguém, ofendendo a dignidade ou o decoro, somente em razão da condição de pessoa politicamente exposta ou que figure na posição de parte ré de processo judicial em curso ou por ter decisão de condenação sem trânsito em julgado proferida em seu desfavor”.

Noutros termos, traduzindo do juridiquês, o projeto apresentado visa dar uma certa “blindagem” as chamadas pessoas politicamente expostas no que pertine suas relações com o setor financeiro, bancos e outras instituições, bem como contra qualquer discriminação ocorrida em virtude da condição de ser pessoa política ou com ela associada que esteja respondendo a processo na Justiça, fica de fora a possibilidade de expressar críticas ou comentários sem que estes sejam automaticamente entendidos como injúria (ao menos preserva-se até aqui o direito de todos de falar o que se pensa e de inúmeros comediantes fazerem sua arte com anedotas de políticos, como é inclusive outra de nossas características).

Como dito, eis aqui a mais nova jabuticaba brasileira, aprovada na Câmara em regime de urgência, sem passar pela análise de comissões ou com maiores detalhamentos, proteção aos políticos e àqueles mais próximos a eles associados, criação de uma verdadeira “casta” a parte, promovendo-se uma desigualdade acintosa e assaz impertinente.

Desnecessário dizer que o trabalho primordial do Legislativo é ser a caixa de ressonância da sociedade, procurar traduzir os seus anseios e desafios e transformá-los em letra de lei, no presente está-se claro o abismo existente entre este anseio ideal e o “legislar em causa própria” encontrado neste nefasto projeto, afinal a quem serve este pretenso diploma legal? qual a sua verdadeira razão? e porque justamente agora isso retorna ao palco de discussões políticas?

De ser observado também o fato de que, pelo menos em parte, aqueles que encabeçaram este movimento e foram favoráveis ao sua aprovação já tiveram de certo um “histórico” com as mesmas situações que ora procuram criminalizar, alguns estão retornando ao palco político após passagem pela Operação Lava-Jato, outros já encontram neste projeto uma chance de se resguardar caso enveredem por condutas semelhantes aquelas outrora investigadas.

Outro ponto que chama atenção está no fato de que as condutas previstas miram em sua maioria atividades relacionadas ao sistema financeiro, justamente este que tem por dever legal manter não somente a lisura das transações mas também informar a órgãos de controle (Ministério Público, Judiciário, Receita Federal, dentre outros) atividades ilícitas, principalmente aquelas ligadas a lavagem de capitais e malversação de dinheiro público, tendo como modus operandi a ser levado a efeito por colaboradores de pessoas politicamente expostas.

Além destes pontos outros poderiam ser também levantados, o que dizer de candidatos? agências de marketing e comunicação ? imprensa? institutos de pesquisa? escritórios jurídicos?

Como se vê esta nova jabuticaba ora plantada em nosso solo legislativo já chega trazendo mais perguntas do que respostas, de objetivo duvidoso e até o momento sem qualquer explicação ou razoabilidade plausível para sua existência, esperemos para ouvir a voz do Senado, se vai levar a frente este PL como está ou se inclinará a perceber que nem toda jabuticabeira em nosso país merece dar fruto.

Anderson F. Fonseca é professor de Direito Constitucional, advogado e especialista em comércio exterior e Zona Franca de Manaus.

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(*)Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB Nacional); Professor de Direito Constitucional e Internacional. Coordenador da International Religious Liberty Association (IRLA) para a Região Noroeste do Brasil; Mestre e Doutorando em Direito.

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