A lavadeira

Seu nome era Maria das Dores. Mas também atendia por Das Dores. Mas era mais conhecida por Dorinha. Nós, os frangotes da rua, a chamávamos de dona Dó. Tinha o corpo franzino, quase esquelético, a pele morena bastante maltratada pelo sol. Os cabelos, bem curtinhos, ressequidos e encaracolados, avolumavam-se um pouco acima do pescoço. No rosto, carregava um sorriso permanente que, de tão espontâneo e irradiante, contaminava com a mais pura alegria quem passasse por ela. Era como conseguia dissimular a magreza do rosto, as rugas e as adversidades que a vida lhe havia outorgado. Talvez daí a nossa preferência em tratá-la carinhosamente por dona Dó.

Dona Dó morava na mesma rua da gente. Abrigava-se com o marido e sete filhos em um espaço que, a rigor, caberia apenas o casal. A casa, com paredes de madeira tosca cheias de brechas, nunca tinha visto a cor de uma demão de cal. O chão, de barro batido, dividia a casa em dois níveis. O primeiro, ao nível da rua, acomodava o único móvel daquele espaço da casa: uma cama velha com estrado de ripas finas e um colchão que, de tão surrado, deixava escapar em diferentes lugares pontas de capim de seu recheio. O segundo nível, mais de um metro abaixo, ligado por uma escada com degraus cavados no barro seco, era o que se poderia chamar de cozinha. A partir dali um vão sem porta dava para o quintal, que, por sua vez, terminava no igarapé. O zinco da cobertura, carcomido pela ferrugem do tempo, era salpicado de furinhos arredondados por onde os raios de sol entravam e faziam uma festa de luz no interior do casebre. Já à noite, os mesmos furinhos no zinco davam lugar a um verdadeiro céu de estrelas em dias de luar.

Alguns vizinhos mais próximos e um pouco mais remediados faziam o que podiam pela sobrevivência dos rebentos de dona Dó e de seu Zequinha. Para isso, reinava um compromisso tácito de solidariedade entre as famílias que moravam naquele pedaço da rua. Durante o dia, sempre aparecia alguém com algum tipo de ajuda. E a casa deles se transformava em uma espécie de presépio que vivia o nascimento de Cristo o ano inteiro.

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Lembro-me de que Mãe nunca faltava com sua parte. Apesar de todas as dificuldades de viúva que enfrentava para sustentar os sete filhos e agregados com um minguado salário-mínimo, fruto de seu trabalho como servente na Santa Casa de Misericórdia, sempre conseguia o extraordinário feito de tornar sagrada alguma ajuda diária, por mais simples que fosse. Às vezes era um pão pequeno, no café da manhã; um pedaço de peixe frito com farinha, no almoço; ou mesmo uma porção de batata doce cozida, no jantar. E aquele pouco se somava ao pouco dos outros gestos de bondade da vizinhança e levava a mais justa alegria àquela gente. 

Seu Zequinha era bem-humorado e com uma piada sempre à espreita na ponta da língua. Vivia de biscates, era uma espécie de faz-tudo no bairro. Dona Dó, irrequieta e com um olharzinho de azougue, por sua vez se virava de todas as maneiras para dar conta das duras tarefas de cada dia. Além de cozinhar, quando tinha o que cozinhar, cuidava da filharada. A mais velha, que a ajudava nos afazeres, tinha apenas quatorze anos. Mas isso não era tudo. Era sina diária de dona Dó, todo santo dia, ficar horas à beira do igarapé nos fundos do quintal da casa, onde lavava, quarava e secava a roupa de cinco famílias do bairro, sem contar com o trabalho, que ela dizia gostar mais do que de lavar, que era passar a roupa com o velho ferro de engomar, alimentado por carvão, sobre a velha mesa de madeira, único móvel na cozinha.

Dono dos meus nove anos, tantas e tantas vezes, sentado na calçada do grupo escolar, eu acompanhava a rotina diária de dona Dó no finalzinho do dia, depois das minhas peraltices da tarde.

Antes do sol se recolher, dona Dó subia com passos lentos e medidos a ladeira da rua principal do bairro. E eu ficava maravilhado e sem entender aquele milagre da física que lhe permitia, sem qualquer apoio das mãos, equilibrar no centro da cabeça, de forma mágica e graciosa, o tabuleiro com uma montanha de roupa passada. Era o produto do suor de seu trabalho de lavadeira, a caminho da casa de uma das patroas na parte alta do bairro.

Pouco tempo depois, dona Dó estava de volta, agora a descer a ladeira. Debaixo do braço direito, o tabuleiro vazio; na cabeça, com o mesmo equilíbrio mágico, uma enorme trouxa de roupa bailando ao ritmo de cada passo seu. Era a roupa suja dos finos do bairro. No dia seguinte, na beira do igarapé, mergulhada na água até a cintura, dona Dó operaria o milagre da lavagem e da limpeza daquela roupa, numa dízima periódica que se repetiria até o derradeiro movimento de suas forças para lavar, quarar, secar, passar, subir a ladeira, descer a ladeira…

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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