Lamentos sobre um texto rebelde

Foi durante o café da manhã. Entre torradas, ovo cozido, café com leite e um iogurte desnatado, desses que não têm gosto de nada, desfiei um rosário de lamúrias a minha mulher. Com as palavras entremeadas de revolta e o sentimento abalado por uma pesada frustração, contei-lhe sobre a amargura que vinha enfrentando há quase duas semanas. Companheira amada e sempre atenta aos pequenos infortúnios que, vez ou outra, me azucrinam a vida, pôs-se a me ouvir com a paciência de Jó e a tolerância de Madre Teresa de Calcutá, mesmo desconfiando não haver nenhuma novidade em minha demanda naquela manhã.

E, de fato, não havia. Mais uma vez eu estava a enfileirar impropérios contra um texto rebelde que abusava da minha virtude de bom samaritano há pelo menos duas semanas. Sei que esses encontros nunca são dourados pela harmonia e pela mútua colaboração. E não me iludo com isso. Afinal, escrever, pelo menos para mim, sempre foi um palco de tensão, de conflito e de muita negociação, em que alguém tem que ceder um pouco, para se chegar a um acordo aceitável para as duas partes. E devo dizer que, no geral, isso acontece, até porque o tempo de batente me fez desenvolver um largo jogo de cintura para esses momentos de confronto. Tanto que, em meu primeiro encontro com esse bendito texto, mediado como sempre pela telinha do computador, eu jurava que fosse um daqueles passeios sem maiores acidentes de percurso.

Mas a coisa dessa vez emperrou mais do que o esperado. Como sempre faço, cravei o título no alto da tela em branco e tentei seguir o fio da meada, com as ideias fresquinhas a bailar em minha cabeça. E até que o primeiro parágrafo não me impôs grandes resistências. Ficou até bacana. Bem-apanhado. Houve acordo fácil.

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A partir daí, entretanto, a minha relação com o texto azedou. Eu queria uma palavra, o teimoso do texto queria outra. Eu construía uma frase assim e assado, ele gozava da minha cara e desfazia o meu feito, alegando ser uma frase manjada. Eu escolhia um adjetivo de minha preferência, ele ironizava, dizendo que não cabia naquele contexto.

Enfim, o que poderia ter sido um simples passeio, a resultar num desses contos bem legais, transformou-se numa verdadeira batalha campal que já durava quase duas semanas. E cá entre nós: eu já estava mesmo cansado daquela peleja e quase disposto a abandonar de vez aquele malfadado texto no meio do caminho e mandá-lo para um indesejado lugar. Foi quando resolvi chorar as mágoas com minha mulher durante o café da manhã de ontem.

Acontece que hoje se deu uma extraordinária coincidência. Desses acontecimentos que a gente jura ser coisa tramada por seres do além em quem a gente nem sonha acreditar. Chateado, pois, com a profunda má vontade daquele texto ingrato, resolvi, como de outras vezes, dar um gelo nele e me ocupar com outros afazeres. Abro o livro “Os sabiás da crônica” e, de tocaia, como que a minha espreita, sou surpreendido com um dos tantos gostosos textos de Paulo Mendes Campos chamado ‘Um conto em vinte e seis anos’. Na crônica, ele conta uma curiosa história que viveu com o também escritor mineiro Murilo Rubião.

Era o ano de 1945. Foram os dois a São Paulo participar do primeiro congresso brasileiro de escritores e dividiram o mesmo apartamento. Numa dada noite, enquanto Paulo Mendes Campos se preparava para dormir, Murilo Rubião se acomodou frente a uma pequena mesa e armou-se de lápis e papel. Pela manhã, o cesto estava até o talo de papel amassado. Sobre a mesinha, a metade de uma folha de papel azulado que registrava o seguinte: “O convidado – conto de Murilo Rubião. Fim do conto: o convidado não existe”. Mais tarde, indagado pelo amigo, Murilo Rubião afirmou que não tinha conseguido o caminho para levar o conto adiante, mas não tinha nenhuma pressa. De qualquer modo, tinha certeza de uma coisa: o convidado não existia, o que considerava essencial.

Esquecido completamente o episódio, 26 anos depois Paulo Mendes Campos recebeu das mãos de um portador amigo uma encomenda que alguém lhe mandara de Minas. Era um envelope com 13 laudas datilografadas. Na parte superior da primeira lauda: “O convidado – conto de Murilo Rubião”. Isso mesmo! Vinte e seis anos depois daquele acontecimento no hotel, Murilo Rubião tinha, finalmente, chegado ao final do conto, fazendo valer a premissa, por ele considerada essencial, de que “o convidado não existia”.

Claro que, terminada a leitura da crônica de Paulo Mendes Campos, eu não consegui me segurar. Corri desenfreadamente para localizar e ler o conto “O convidado”, de Murilo Rubião. Uma maravilha de conto gestado em 26 anos!

Naquele mesmo dia, no lanche da noite, narrei o acontecido a minha mulher. Ela me encarou com serenidade, deixou escapar um risinho de censura, franziu os cantos dos lábios e sacudiu a cabeça três vezes para um lado e para o outro. E nem precisou falar nada para eu ouvir as palavras ditas pelo seu silêncio.

Na manhã seguinte, logo depois do café, acomodei-me diante do computador parceiro e lasquei um carinhoso abraço no título e no primeiro parágrafo, já prontos na parte superior da tela há quase duas semanas. Em pouco tempo, com o ego abastecido por uma incontida alegria, apertei solenemente na tecla da última fileira inferior à direita o ponto final. Estava pronto o conto “O último biribá”. E, um dia depois, dei por concluída esta crônica inspirada em uma crônica do Paulo Mendes Campos.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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