À margem da grilagem: em 12 anos, Pará recuperou apenas um de 10 mil imóveis com títulos de terra fraudados

Segundo a pesquisa, uma área de floresta dez vezes maior que a cidade de São Paulo está entre os títulos de terras cancelados por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Foto: Reprodução)
Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Estudo inédito lançado nesta semana mapeou o rastro de ilegalidade deixado pelo “caos fundiário” em curso no Estado do Pará, um dos nove territórios da Amazônia Legal que recorrentemente lideram indicadores de irregularidades ambientais no bioma. De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o governo paraense retomou apenas um dos mais de 10 mil imóveis rurais cancelados por suspeita de grilagem, em 12 anos. Um péssimo exemplo vindo do Estado candidato a ser a sede da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), em 2025. 

Segundo a pesquisa, uma área de floresta dez vezes maior que a cidade de São Paulo está entre os títulos de terras cancelados por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os pesquisadores analisaram, ao todo, 10.728 matrículas canceladas nos cartórios por terem sido registradas ilegalmente e concluíram que pelo menos 332 lotes realmente existem e poderiam voltar ao patrimônio público.

Todos esses títulos somam área superior a 91 milhões de hectares, ou seja, 73% da extensão territorial do Pará. “O que seria impossível, pois o Estado já possui quase 50% de seu território formado por áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas”, alerta o instituto.

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O estudo reuniu, além de cientistas do Imazon, pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA).

Área a recuperar equivale à soma de dez vezes a cidade de São Paulo, convertida em floresta: cerca de 1,5 milhão de hectares (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

À margem da grilagem

Segundo a pesquisa, dois grandes problemas podem ser a causa dos registros irregulares: terras matriculadas em sobreposição a outras ou, ainda, a titulação de áreas fantasmas. Resumindo: roubo de terras públicas e tentativas de empréstimos bancários com hipoteca. É o que também explica a pesquisadora do Imazon Brenda Brito. 

“São, possivelmente, áreas que foram matriculadas de forma ilegal, porque elas, de fato, não existiam fisicamente, então a gente tá falando de papéis que não têm qualquer relação com a terra. Eram títulos totalmente fraudados e que eram levados ao cartório”, diz a pesquisadora. Ela também pondera que, numa outra hipótese, “o título da área falava de mil hectares e se colocou um zero a mais na hora de fazer o registro, aumentando isso para 10 mil hectares”

“Ou, eventualmente, você pode estar falando de áreas que, sim, possuíam toda a documentação, mas aquilo não estava apresentado ao cartório”, acrescenta Brito. Ela ressalta que, nestes casos, existe um procedimento previsto pelo Tribunal de Justiça (TJ) para a reversão do cancelamento, “é o que se chama de requalificação”, explica. 

Se for o caso, é preciso apresentar uma lista de documentos, incluindo o georreferenciamento dos imóveis. No entanto, o estudo não chegou a uma resposta sobre quantos imóveis solicitaram a reversão ou, ainda, quantos foram requalificados. 

Brenda Brito, pesquisadora do Imazon (Acervo pessoal)

Brenda Brito também destaca que os títulos têm validade legal até que o cancelamento seja realizado. No entanto, nesse meio tempo, além de serem usadas como garantia para empréstimos, essas áreas podem ser vendidas, exploradas com planos de manejo madeireiro e até incluídas em projetos de créditos de carbono. Um cenário que, na avaliação dela, pode inflar os conflitos por terra e as ameaças territoriais contra comunidades tradicionais.

Municípios recordistas

Mesmo sendo áreas bem distribuídas pelo território do Pará, as irregularidades são mais robustas nos municípios de São Félix do Xingu e Altamira, ambos também recordistas em desmatamento. Juntos, somam mais de 45 milhões de hectares de terra, metade dos títulos cancelados.

Cancelamento de títulos por município, no Pará (Imazon/Reprodução)

Compensação ambiental ameaçada

Para o professor de Direito Agroambiental da UFPA e coautor da pesquisa, Girolamo Domenico Treccani, a situação observada no Pará não é apenas um “caos fundiário”. Ele afirma que as irregularidades evidenciam uma “situação de caos ambiental”. O cenário serve de alerta para interessados em investir no mercado de sequestro de carbono, no Estado, como compensação ambiental – segmento já inflamado pelas fraudes, segundo Treccani. 

Ele revela que a pesquisa confirmou denúncias já apresentadas em investigações anteriores a respeito do assunto: “existem casos de matrículas canceladas que estão sendo objeto de contrato de crédito de carbono”, afirma. 

“Parece inacreditável, mas infelizmente é a ponta mais importante, que poderia ajudar a Amazônia, o Pará e o Brasil a ter uma recompensa ao seu ativo ambiental. E nós ainda temos muitos ativos válidos de um ponto de vista ambiental, muitas florestas públicas, áreas destinadas às populações tradicionais, como quilombolas, indígenas ou projetos de assentamentos agroextrativista, que poderiam ser oferecidas no mercado nacional e internacional de crédito de carbono. O que se assiste, porém, é um assalto ao patrimônio público, na medida em que se celebram contratos cuja legitimidade de um ponto de vista fundiário e ambiental é absolutamente questionável”, lamenta o coautor da pesquisa.

Para o professor de Direito Agroambiental e coautor do estudo Griolamo Domenico Treccani, as irregularidades ameaçam o mercado de créditos de carbono, no Pará (Imazon/Reprodução)

Os mais prejudicados, na avaliação do pesquisador, são as populações tradicionais e originárias, por causa do agravamento da dificuldade de acesso à terra para essas comunidades. 

“Infelizmente, os estudos publicados nas últimas duas décadas pela Comissão Pastoral da Terra nos mostram como a violência faz parte do dia a dia dessas populações”, cita Girolamo Treccani. “Se antes eram camponeses, lideranças sindicais, lideranças religiosas e advogados, nos últimos levantamentos são as populações tradicionais as vítimas dessa situação”, complementa o especialista. 

Tamanho do problema

A área a recuperar é enorme: a soma de dez vezes a cidade de São Paulo, convertida em floresta. Cerca de 1,5 milhão de hectares, 60% do total dos 332 imóveis localizados pelos pesquisadores no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – dentre os mais de 10 mil cancelados -, correspondem a regiões de mata. Daí a urgência pela retomada desses territórios, que podem estar em áreas do governo estadual ou federal, segundo o estudo. 

Juntos, os mais de 300 imóveis têm 2,5 milhões de hectares de terra. Para chegar aos números, a pesquisa também cruzou dados de georreferenciamento das áreas com indicadores de mudança no uso e cobertura do solo: mais de 800 mil hectares já haviam sido desmatados até 2020, 34% do total. E quase 80% disso, por conta do avanço das atividades agropecuárias.

Mais de 800 mil hectares de floresta já haviam sido desmatados até 2020 dentro dos imóveis com títulos cancelados pelo CNJ (Paulo Whitaker/Reuters)

Transparência

A retomada deveria seguir o exemplo do registro da gleba Arraiolos, feito no nome do governo estadual, em 2018. Foi o único território retomado em um período de 12 anos entre os milhares de títulos cancelados, segundo o levantamento do Imazon, UFPA e IFPA. 

Trata-se de uma área de 386 mil hectares, mais de três vezes a cidade do Rio de Janeiro, localizada no município de Almeirim, distante mais de 400 quilômetros de Belém. A conservação da unidade ocorreu depois que uma fazenda foi retomada por ter sido registrada ilegalmente em nome da empresa Jari S/A, alvo de cancelamento determinado pelo CNJ, como apontado pela pesquisa.

“Nosso estudo destaca que a decisão do Conselho Nacional de Justiça, de 2010, foi um passo essencial para combater a grilagem de terra no Estado do Pará, porém ainda é necessário avançar”, classifica a pesquisadora e coautora do estudo, Brenda Brito.

Ela defende que a sociedade precisa ter conhecimento sobre o que de fato aconteceu com os imóveis que tiveram títulos cancelados. “A transparência é essencial para evitar que essas matrículas ainda, eventualmente, sejam utilizadas para investimentos e para implantação de projetos, porque, aí, você vai estar gerando mais insegurança jurídica no Estado”, avalia a pesquisadora. 

Decisão histórica

Considerada histórica por organizações da sociedade civil, a decisão do CNJ, de agosto de 2010, determinou o cancelamento administrativo, sem necessidade de ação judicial, de todos os registros de imóveis feitos em cartórios do Pará que desrespeitaram a Constituição Federal.  

Pela legislação, existe um limite máximo de área que pode ser titularizado por órgãos fundiários sem prévia autorização do Congresso, e que varia de acordo com a data de matrícula. Entre julho de 1934 a novembro de 1964, esse limite foi de 10 mil hectares. A partir daquela data, caiu para 3 mil hectares, limite que ficou fixado até outubro de 1988. Hoje, é de 2,5 mil hectares. Isso também se aplica para áreas desmembradas em mais de uma propriedade.

Como resultado, os supostos proprietários devem provar que as terras foram adquiridas conforme a lei. “É uma decisão histórica, exatamente porque permite à sociedade brasileira conhecer essa realidade de caos fundiário”, avalia o pesquisador e professor de Direito Agroambiental, Girolamo Domenico Treccani. 

“Ao mesmo tempo, essa decisão do CNJ resguarda o direito de todas aquelas pessoas que tinham documentos válidos. Portanto, uma eventual matrícula bloqueada ou até cancelada, mas cuja o detentor comprovasse que tinha origem legítima, poderia ser requalificada, isto é, voltar a ter vigência e desbloqueá-la”, acrescenta o professor. 

Treccani diz que agora é preciso sistematizar as informações sobre a localização, tamanho e quantidade de públicas estaduais e federais envolvidas nos cancelamentos. Em segundo lugar, ela aponta que é preciso saber para quem as terras foram destinadas e para quais finalidades. 

“Na medida em que a terra for pública, nós entendemos que a União e o Estado têm que participar de uma maneira ativa desse debate. Nós não acreditamos que se trate de contratos assinados, exclusivamente, entre particulares, exatamente porque o objeto fundamental é a proteção da floresta. E a floresta se localiza em terra pública”, conclui Domenico Treccani.

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