Ailton Krenak na ABL representa reconhecimento da mobilização e articulação indígena

O escritor e ambientalista Ailton Krenak. (Mathilde Missioneiro/Folhapres)
Ademir Ramos – Especial para a Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS (AM) – Ativista político, pensador e escritor Ailton Alves Lacerda, conhecido como Ailton Krenak, identidade agregada de seu povo pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, é o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Depois de mais de 500 anos da era do descobrimento, Ailton Krenak é notícia em todo o Brasil por ser o primeiro indígena eleito para ABL. Ele é membro da Academia Mineira de Letras, professor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade Nacional de Brasília, vencedor do Prêmio Juca Pato em 2020. Ailton vive na Reserva Indígena Krenak, em Resplendor, nas Minas Gerais.

Suas últimas obras são “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), “A vida não é útil” (2020), “O amanhã não está à venda” (2020) e o “Futuro Ancestral” (2022), essa última uma das mais vendidas na lista do PublishNews.

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Ailton Krenak, aos setenta anos, foi eleito para ABL com 23 votos, no dia 5 de outubro, para a cadeira número 5, vaga com a morte do historiador José Murilo de Carvalho. O autor disputou com 11 candidatos, entre eles outro pensador, escritor e ativista indígena Daniel Munduruku. A posse do acadêmico ainda não foi agendada.

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Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, o ativista dos direitos indígenas e ambientais marcou posição contrária às mineradoras, latifundiários e grileiros, presentes, hoje, no Congresso Nacional nas bancadas da Bala, da Bíblia e do Boi. Ailton Krenak notabilizou-se com uma das cenas mais emblemáticas no plenário da Constituinte, pintando o rosto com tinta preta de jenipapo enquanto discursava da Tribuna em favor do direito da demarcação das terras indígenas, contra o genocídio de sua gente e as queimadas da Amazônia.

A luta do Movimento Indígena, no contexto da democratização do País, cravou na Constituição Federal de 1988, no Capitulo VIII, dois Artigos (231/232) determinantes para o presente e futuro dos povos originários do Brasil.

Quanto ao Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Entre os sete parágrafos desse artigo, o primeiro ganhou maior visibilidade por conceituar legalmente a matéria que ainda hoje é disputada no Congresso Nacional pelo agronegócio sob a legenda de “Marco Temporal”, contudo, saibam eles e a quem interessar possa que: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

A eleição de Ailton Krenak para ABL não se reduz somente ao mérito desse pensador, é muito mais. Trata-se do reconhecimento do processo de mobilização e articulação iniciado na década de setenta pelo Conselho Indigenista Missionário, Comissão Pró-Índio, Centro de Documento Indígena/Isa, Operação Anchieta, Universidades, Ordem dos Advogados do Brasil, União Nacional dos Estudantes, Movimento em Defesa da Amazônia e demais instituições nacionais e locais que participaram ativamente desse processo de Democratização do País.

Na fervura das lutas sociais e étnicas várias lideranças indígenas foram assassinadas, assim como também seus parceiros de combate. Mas, os sonhos e projetos estão vivos a se multiplicar nos Movimentos Indígenas e na inserção dos (as) jovens nas Universidades e demais frentes dos campos do saber, fazer e ser dessas culturas.

Na história da literatura indígena temos um fato marcante a partir da década de 60, representando dessa feita um divisor de águas. A antropóloga Berta Ribeiro é testemunha ocular desse fato ao documentar a escrita e a edição original da mitologia heroica dos “Índios Desâna – Antes o Mundo não Existia”, com copyright datado de 1980, editado pela Livraria Cultura Editora, São Paulo.

Para antropóloga, “esta é a primeira vez que protagonistas indígenas escrevem e assinam sua mitologia. Tolamãn Kenhíre (Luiz Gomes Lana), Índio Desâna do clã do mesmo nome, e seu pai, Umúsin Panlõn Kumu (Firminiano Arantes Lana), de 33 e 53 anos de idade, respectivamente, decidiram fazê-lo para deixar a seus descendentes o legado mítico de sua tribo (…).

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Berta Ribeira, autora da introdução da obra coletiva da mitologia Desâna, afirma que: “O maior valor do livro que tenho o privilégio de prefaciar é seguramente de ter sido escrito por dois índios (…). Isto confere autenticidade incontestável ao conteúdo (…). Documenta o resultado da simbiose entre o conservantismo cultural e o uso de instrumento adquirido de nossa civilização para exprimi-lo; a linguagem escrita

Dos autores da obra “Antes o mundo não Existia”, Luiz Gomes Lana está vivo e mora na Aldeia São João, no Rio Tiquié, distrito de Pari-cachoeira, no município de São Gabriel da Cachoeira, a Noroeste do Estado do Amazonas.

Como bem reconhece Daniel Munduruku, a literatura indígena tem, sim, origem: “Como processo de registro escrito ela se inicia com o icônico livro Antes o mundo não existia. Claro que anteriormente já haviam existidos outros ensaios de Eliane Potiguara, peças teatrais de Ademario Payayá e mesmo apontamentos de Álvaro Tukano que registravam os primeiros passos do movimento indígena (…). Mas, é muito importante que esta obra seja assim apresentada para evitar que alguém se diga o pai da ideia

Não bastasse toda a grandeza da obra dos Lana, como precursor da literatura indígenas no Brasil, Daniel chama-nos atenção e faz questão de destacar que é fundamental frisar o caráter coletivo da obra: “É sua principal contribuição para não nos permitir esquecer da característica fundante da nossa literatura – ela é a voz da memória coletiva de nossa gente; garantia do pertencimento de quem escreve; força inequívoca da identidade ancestral que é produzida, ou melhor, atualizada pelos novos agentes da literatura.”

Além de Daniel Munduruku, buscamos também ouvir o pensador e ativista Álvaro Tukano, que exaltou o compromisso de Ailton Krenak com a luta dos povos originários e o seu valor intelectual.

Na oportunidade, Álvaro, que é Tukano do Distrito de Pari-Cachoeira, lembrou outros pensadores indígenas como Gabriel Gentil, Manoel Moura (Tukano), Feliciano Lana (Desâna), Daniel Cabixi, Marcos Terena, David Yanomami e demais sábios anônimos tanto da Amazônia como de todo Brasil: “Pra nós, falar de literatura indígena é falar de nós, dos nossos antepassados, é decifrar os códigos antigos para ensinar os jovens líderes a manter viva as tradições milenares com alegria e saber”, explica.

Em síntese, a literatura indígenas carregada de significados ancestrais quando tipificada por interlocutores do campo filosófico pode ser também comparada com os escritos de Homero ou dos Pré-socráticos como sendo uma “maneira de pensar”, explica Raven e Kirk. Os filósofos Pré-Socrático, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 1. Mais ainda na perspectiva da pós-modernidade, pode representar também uma “ruptura cultural” nos termos de Kaplan, E. Ann (Org). O mal estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, p.11.

No entanto, livrando-se dos rótulos e das visões de fim de mundo à revelia da história prefiro compreender as cosmovisões indígenas ao calor dos “Tristes Trópicos”, de Levi- Strauss, convencido de que o indivíduo não está só no grupo e cada sociedade não está só entre as outras, o homem não está só no universo. “Assim que o arco-íris das culturas humanas tiver acabado de afundar-se no vazio cavado pelo nosso furor; enquanto estivermos presentes e existir um mundo – este arco ténue que nos une ao inacessível permanecerá” (1981: p. 409).

Tal condição posta resultará das decisões políticas, econômicas e sociais que as ações estruturantes das corporações transnacionais, dos agentes governamentais e multilaterais tomarem em atenção aos biomas e ecossistemas do planeta que teima em viver de forma sustentável.

(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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