‘Quem tem fome, tem pressa’: alta nos preços da comida faz doações desabarem até 97%

Diante do desemprego e da inflação galopante, pelanca vira esperança de alimento para famílias que buscam com o que matar a fome. (Domingos Peixoto / Agência O Globo)
Com informações do Infoglobo

RIO — Nos primeiros meses da pandemia, uma rara boa notícia trazida junto com a Covid-19 foi a onda de solidariedade que varreu o País. A sociedade civil saiu na frente do poder público e tratou de socorrer a parcela mais necessitada da população, que, em tempos de isolamento social, foi submetida a privações ainda mais profundas do que as habituais. Quem tem fome, tem pressa, ensinou o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997). Na Ação da Cidadania, ONG fundada por ele, o sinal de alerta vem agora com a constatação de que as doações responsáveis pela alimentação de muitas famílias já não chegam nas mesmas velocidade e quantidade de meses atrás.

A bem-vinda baixa nos números de contaminação e mortes, provocada pelo avanço na vacinação, deve ser comemorada, mas, por outro lado, desmobilizou pessoas físicas e empresas voluntárias. A inflação nas gôndolas dos mercados e a alta do gás pioraram a situação. Como resultado dessa combinação, a Ação da Cidadania, que chegou a arrecadar mais de R$ 10 milhões por mês este ano, agora recebe em torno de R$ 300 mil, uma redução de mais de 90%.

Na outra ponta, a quantidade de gente pedindo ajuda não para de crescer. No Rio, entidades menores, em rede, tentam apoiar umas às outras, trocando alimentos e outros donativos para suprir necessidades emergenciais. Outro fenômeno chama a atenção: pessoas que mudaram de lado, passaram de voluntários a candidatos a algum tipo de auxílio.

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Crislaine Inglidis, de 32 anos, sempre participou ativamente do projeto Parque Vivo, que funciona há 18 anos na Gávea com aulas de reforço escolar e outras atividades para moradores do Parque da Cidade e da Rocinha, na Zona Sul. Com o desembarque do novo coronavírus no Rio, perdeu o emprego de recepcionista em uma clínica médica, que fechou. Ela e o filho, Juan, de 7 anos, que vivem no Parque da Cidade, chegaram a depender integralmente de cestas básicas repassadas na entidade, parceira da campanha Eu Ajudo Como Dá, criada na pandemia pela dentista Simone Levy.

“Sempre fui ativa como voluntária no projeto, ajudando muitas pessoas com o pouco que tinha. Mas, chegou uma hora em que eu precisei de ajuda também”, conta Crislaine, que ainda necessita de apoio, mas já começa a ver luz no fim do túnel, na forma de alguns trabalhos extras.

Histórias como a de Crislaine estão longe de serem incomuns. Diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Kiko Afonso conta que a instituição, atuante junto a uma rede de ONGs, movimentos e lideranças de todo o Brasil, agora convive também com pessoas físicas batendo à porta. A próxima edição da tradicional Campanha Natal sem Fome é sua esperança de ver as doações voltarem a crescer.

De janeiro a agosto deste ano, a Ação da Cidadania conseguiu arrecadar cerca de R$ 100 milhões entre doações financeiras e de alimentos — um recorde na história da fundação. Em setembro, no entanto, o montante mensal desabou.

“Há a crise afetando as empresas e também a questão cultural das pessoas que só ajudam na tragédia e não doam no drama. Quando as pessoas veem na capa do jornal Extra famílias pegando ossos para comer, vão correndo doar. Mas, não há uma cultura de doação contínua. Fora que há gente que doava e, agora, está mais apertada. Os servidores públicos do Rio eram grandes doadores, mas isso já não se vê mais”, observa Kiko.

Este ano, por outro lado, a fundação aumentou de 2.100 para 3 mil as instituições assistidas. Para o diretor, a crise econômica enfrentada no Rio desde 2016 também é um fator que agrava o quadro de miséria:

“A Covid serviu para acelerar o processo. Sem o vírus, inevitavelmente, daqui a um ou dois anos, estaríamos vivendo o cenário de agora”, disse.

Moradora do Morro Santo Amaro, no Catete, Maria Lúcia Alves da Silva, 63 anos, ainda precisa, mas já não conta mais com as doações como antes. Ela tem a guarda de dois netos, Leon, de 11, e Lívia, de 15, e se desdobra em faxinas para dar conta do sustento dos jovens. Os três vivem num cômodo (que precisa urgentemente de obras contra infiltrações) com dinheiro de um salário mínimo de pensão do marido de dona Lúcia, falecido, mais R$ 500 mensais que a idosa recebe por seu trabalho pesado:

“Aqui sou e Deus”, resume ela, que, eventualmente, é ajudada pelo Instituto Pastoral São Cosme e Damião, parceiro da Ação da Cidadania. “Eles tentam ajudar, mas nem sempre dá. Tenho recebido a cesta um mês sim, outro não”.

Luis Vander, 39 anos, escolhe suas peças e ajuda a organizar a distribuição. Em situação de rua, ele tem habitado as calçadas da Glória Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Luís Vander, 39 anos, escolhe suas peças e ajuda a organizar a distribuição. Em situação de rua, ele tem habitado as calçadas da Glória. (Domingos Peixoto / Agência O Globo)

O movimento União Rio se destacou na pandemia com a entrega de leitos e materiais hospitalares, como EPIs. Depois, focou no auxílio a famílias em situação de vulnerabilidade.

“Logo no início, a gente entendeu que a fome chegou antes do vírus nas comunidades. Tivemos um boom de doações até julho de 2020. Em janeiro deste ano, as pessoas não estavam mais doando cestas de alimentos. E isso casou com o fim do auxílio emergencial do governo”, lembra Daniella Raimundo, cofundadora do União Rio.

Segundo Daniella, a fome nas casas dos mais pobres voltou com força em fevereiro, e o assunto na mídia fez elevar, de novo, as doações:

“De abril a julho deste ano, distribuímos em torno de 30 mil cestas por mês. Mas aí as ofertas voltaram a diminuir de novo. Em outubro, tínhamos só 300 cestas em estoque”.

Menos cestas básicas

Esse movimento de ioiô nas ações de solidariedade é um tormento à parte. Na comunidade do Batan, em Realengo, a Associação Beneficente Amigos pela Caridade, que nos momentos mais críticos de restrições na pandemia entregava 2 mil cestas básicas por mês, atualmente não tem como atender nem às 160 famílias cadastradas no seu projeto de reforço escolar. Há seis meses, começaram os cortes na lista de beneficiados e, como resultado, dias com fila na porta, de pessoas em desespero.

“Aqui no Batan temos pessoas passando fome mesmo. E a alta dos alimentos só agrava essa situação”, relata Agnes Ribeiro, fundadora da associação.

Catadora de garrafas PET e de latinhas na comunidade, Maria Aparecida Conceição, de 43 anos, tem duas filhas. Beatriz, de 12 anos, é inscrita no projeto de Agnes e, por isso, recebe a cesta básica.

“Muita coisa mudou. A gente ganhava muitas doações, e isso já não acontece mais. Agora, tem mais catadores no bairro, porque muitos moradores ficaram sem emprego. A cesta básica é a base da nossa alimentação”, revela Maria.

Em busca de doadores

Também atuante nos últimos tempos, a campanha “Eu Ajudo Como Dá” calcula em 60% a queda nas doações de alimentos e dinheiro em comparação com os meses de acirramento da pandemia: o movimento da sociedade civil, desde abril do ano passado, quando teve início, ajudou mais de 20 mil pessoas e distribuiu cerca de 3 mil cestas básicas. Hoje, por mês, a meta é entregar o kit de alimentos a algo entre 100 e 200 famílias de projetos ligados ao Instituto da Criança.

A dentista Simone Levy, criadora e líder da campanha, adianta que, no Natal, receberão ajuda 200 famílias. Para driblar a crise nas doações, ela vem investindo em campanhas até em condomínios. Na ação “Meu condomínio ajuda como dá” é instalado um banner e uma caixa para receber os alimentos durante 30 dias. A mesma iniciativa já foi levada a escolas.

“Temos o tempo todo que fazer campanhas paralelas para que as pessoas vejam o nosso projeto. Mesmo quem doa desde o início já está ajudando de maneira modesta, com valor menor ou menos alimentos”, afirma Simone, que precisou criar uma modalidade de cesta básica mais enxuta.

“Com o aumento do valor dos alimentos, uma cesta básica por R$ 70 passou a ser inviável. Então, agora para o Natal, lançamos duas: uma no valor de R$ 50 e outra no de R$ 100. A menor não tem proteína, muitas vezes não tem óleo e manteiga, nem café. E o arroz, em vez de ser no pacote de 5 kg, é de 2 kg”.

No Parque Vivo, famílias hoje dividem os alimentos de uma única cesta básica.

“E o pior é que a situação das pessoas que perderam emprego na pandemia está mais grave agora, ainda mais com a inflação forte”, diz Andreia Martins, uma das fundadoras do projeto.

Simone Levy, que também atua com sua campanha junto à população em situação de rua, vê no dia a dia das ações de distribuição de alimentos nas calçadas o sofrimento sentido na pele por um número crescente de pessoas.

“Há famílias inteiras nas ruas. E, além das que a gente sempre encontra nas nossas ações, vêm surgindo sempre pessoas novas”, diz ela, fazendo um apelo. “Tem várias maneiras de ajudar. Uma delas, por exemplo, é divulgando projetos como o nosso”.

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