Biografia do presidente da Rússia, Vladimir Putin, narra assassinatos de seus desafetos

O presidente russo Vladimir Putin em encontro da Comunidade de Estados Independentes em Astana, no Cazaquistão (Dmitri Azarov - 14.out.22/Sputnik/Reuters)
Com informações do Estadão

SÃO PAULO – Vladimir Putin cometeu publicamente, em junho de 2005, um crime de apropriação indébita. Ele recepcionava em São Petersburgo um grupo de empresários estrangeiros, entre eles Robert Kraft, proprietário do time de futebol americano New England Patriots.

Kraft mostrou-lhe um anel com 124 diamantes, que ganhara como prêmio por um campeonato conquistado. Putin pegou o anel e o colocou no bolso. Para evitar constrangimentos, Kraft declarou bem depois que havia presenteado com a joia o presidente da Rússia.

O incrível episódio é narrado por Masha Gessen, jornalista da Rússia, no livro “O Homem sem Rosto: A Improvável Ascensão de Vladimir Putin”. Publicado em português pela primeira vez em 2012, a comprometedora biografia é agora relançada pela Intrínseca.

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O presidente russo Vladimir Putin em encontro da Comunidade de Estados Independentes em Astana, no Cazaquistão – Dmitri Azarov – 14.out.22/Sputnik/Reuters

De certo modo, o episódio do anel é o menos grave entre os narrados por Gessen. O livro discorre sobre a sucessão de assassinatos de desafetos do presidente russo, que teriam sido praticados por uma divisão especial da FSB —a polícia secreta que sucedeu à temerária KGB, dos tempos do comunismo. O próprio Putin foi chefe da KGB, antes de entrar para a política, em 1999, convidado pelo então presidente Boris Ieltsin.

O grande problema da minuciosa investigação de Gessen está no fato de poder no máximo lidar com profundas verossimilhanças, sem o apoio de provas que dariam à narrativa um conteúdo mais transparente. As provas inexistem quando se reconstituem episódios supostamente provocados pela FSB. Estamos, portanto, numa espécie de mato sem cachorro, em que prevalece a fé que atribuímos a quem conhece os corredores sombrios do Kremlin.

O assassinato de opositores não foi uma prática inaugurada por Putin. Vem dos tempos da finada União Soviética e entrou incólume no período que se acreditava controlado pela democracia.

Galina Starovoitova foi então a mais conhecida das vítimas. Antropóloga de São Petersburgo, deputada e líder de uma bancada que defendia direitos humanos e a justiça eleitoral, ela foi abatida por dois tiros ao entrar em seu apartamento, na noite de 2 de novembro de 1998.

A relação das demais vítimas é longa. Ela traz Alexander Litvineko, ex-oficial da KGB que estava exilado em Londres e foi envenenado no final de 2006 por um dispositivo radioativo chamado polônio-210. É um produto extraído apenas na Rússia e de produção rigorosamente controlada. A FSB poderia tê-lo usado, e é uma hipótese, com a autorização do gabinete do presidente.

A jornalista investigativa Anna Politkovskaia chegou a ser envenenada, curou-se, mas acabou assassinada a tiros em 7 de outubro de 2006. Ela era uma profunda conhecedora da República da Tchetchênia, cuja guerrilha secessionista Vladimir Putin duramente reprimiu. Ou então Serguei Iushenkov, jovem empresário liberal, assassinado horas depois de registrar um novo partido pelo qual pretendia concorrer em 2003 à chefia do Estado.

É numeroso o contingente de defuntos cujos atestados de óbito trazem um oficioso ponto de interrogação. Digamos que é possível que determinado dissidente tenha morrido de infarto do miocárdio ou que determinado oligarca tenha sido morto por um rival. Ocorre, no entanto, que as vítimas estavam todas em rota de atrito com Putin, o que, argumenta Gessen, coloca o presidente russo na posição de suspeito.

Mas tão grave quanto a eliminação física de adversários está a asfixia da democracia russa que Putin praticou. Ao suprimir, por exemplo, a eleição direta para a escolha dos 89 governadores russos. Ou perseguir impiedosamente lideranças que podiam lhe fazer sombra, como o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, que mal conseguiu fazer campanha porque “ordens superiores” desalugavam locais para seus comícios ou bloqueavam a pista de aterrissagem para o avião em que ele carregava assessores.

As eleições são sucessivamente ganhas por Putin e seu partido, por porcentagens de votos impossíveis de averiguar, já que não há uma autoridade eleitoral independente. Com o poder tão concentrado nas mãos de tão poucos —e isso não é explorado convenientemente pelo livro—, a corrupção se torna um instrumento paralelo de poder.

Por que é que nenhuma das três redes de televisão, todas elas do governo, não investiga os custos do verdadeiro palácio que o presidente construiu na beira do mar Negro? E por que não se verifica se é real a informação de que ele é proprietário de uma fortuna pessoal de US$ 20 bilhões?

Em autocracias como a russa tais fatos não são apurados, bem como os mecanismos de decisão —e é um período não coberto pelo livro— que levaram à invasão da Ucrânia e à guerra contra o país vizinho.

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