Cármen Lúcia é guardiã da Amazônia no STF

Ministra do STF Cármen Lúcia (Divulgação)
Ademir Ramos – Especial para a Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS – Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) duas ações referentes ao desmatamento da Floresta Amazônica. A relatoria dos trabalhos da ADPF 760 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) e da ADO 54 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) é da ministra Cármen Lúcia.

Os arguentes são PSB, Rede Sustentabilidade, PDT, PV, PT, PSOL, PCdoB. São sete os partidos políticos que acionaram o STF para que a Corte determine à União com seus órgãos competentes a executar, de maneira efetiva, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm).

As ações em curso denunciam uma conjuntura de deficiência e omissão estatal a gerar retrocessos em matéria de salvaguarda do meio ambiente, especialmente no que se refere à proteção ambiental da Amazônia.

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Quanto às Ações, a ministra relatora Cármen Lúcia, em seu voto, fundamenta-se nos indicadores do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), nas declarações de especialistas, nas decisões da Corte e de estudos científicos afins sobre a devastação da floresta aproximando-se do “ponto de não retorno”, atingindo não apenas a população brasileira, mas as condições planetárias em políticas climáticas, de proteção a qualidade do ar, solo e biodiversidade, nesta e nas futuras gerações.

A densidade do voto da ministra Carmén Lucia remete-nos a uma leitura compreensiva do Estado Constitucional Ecológico, considerando o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no art. 225, somando-se a esta ordem, a defesa do meio ambiente como fundamento econômico do Brasil nos termos do art. 170 da CF (Constituição Federal), a saber que: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)” amparada na regência dos princípios constitucionais.

A leitura do voto em juízo é sem dúvida uma aula magna caracterizada pela unidade de sentido focado nos valores, princípios e processo da CF de 1988 sob a orientação jurídica e histórica das questões socioambientais contempladas pelo direito constitucional ambiental codificado a partir da verificação feita ainda nos anos de 1960, quando se iniciou a discussão sobre a poluição do ar e o agravante da saúde humana, tornando-se pauta nas agendas das corporações privadas e públicas.

No horizonte histórico, a relatora faz lembrar que há 50 anos, em 1972, o que era apenas uma preocupação com a questão climática converteu-se em temática a ser discutida no concerto das nações. Cento e treze países do mundo reuniram-se em Estocolmo (capital da Suécia) para se ocupar do tema. Além da polarização norte-sul, a pauta política e econômica dominante firmava-se, sobretudo, na democratização, desenvolvimentismo e desmilitarização dos governos, principalmente, na América Latina.

Na disputa de múltiplos interesses que permeiam a lida do direito ambiental, a relatora chama-nos atenção da participação do Brasil na conferência de Estocolmo, sendo representado pelo professor e naturalista Paulo Nogueira Neto (1922-2019), o primeiro a ocupar a Secretaria Especial do Meio Ambiente em 1973.

Foi desta Secretaria que se originou o Ministério do Meio Ambiente. Mas, é justo dizer que a agenda socioambiental no Brasil vem sendo discutida junto às instituições nacionais desde 1972, o Ministério responsável, como é sabido, foi criado quase duas décadas antes do advento da CF de 1988.

Com esta mesma determinação, em 1984, criou-se também o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) como um passo a mais na busca de formulação de políticas ambientais. A despeito desta ênfase institucional, o Brasil não chegou à eficiência das políticas públicas adotadas, é o que consta no voto da ministra.

Entre 1985 e 1987, mais amadurecida a matéria, em face das repercussões cientificas comprovadas das consequências da emissão do carbono na atmosfera, o Brasil continuava a tratar com descaso administrativo a questão ambiental e seus efeitos graves e por esta razão foi alvo de manifestações de desagrado em todo o mundo.

Mesmo após a promulgação da CF, em 1988, a situação continuou bastante precária, foi quando a prestigiosa revista norte-americana Time estampou, em sua capa na edição 18 de setembro de 1989, uma contundente e constrangedora foto do incêndio da floresta amazônica, manifestando-se, de acordo com o voto da ministra, pela salvação da floresta amazônica.

Para Cármen Lúcia, o presidente José Sarney, com atuação precisa do Itamaraty, concluiu ser necessário fazer um gesto internacional demonstrativo de busca de mudança de rumo político no sentido da proteção ambiental e da preservação das florestas e das águas, com respeito aos indígenas e suas terras e culturas. O debate constituinte de 1987-1988 conduzira, pouco antes daquela denúncia internacional, à entronização do tema em normatividade específica.

As discussões sobre a inclusão da matéria no texto constitucional é sem dúvida alguma a base do modelo adotado o que vinha sendo construído desde a década de setenta, a saber, a necessidade de se cuidar do meio ambiente de forma protetiva com a preservação das florestas, águas, recursos minerais e, especialmente, das nações indígenas, das populações que habitavam e habitam as áreas a serem objeto de conservação e proteção.

Foi quando pela primeira vez a CF de 1988 dedicou um capítulo, expressamente, ao meio ambiente. Nele se dispõe sobre os princípios da dignidade ambiental e da responsabilidade e da solidariedade intergeracional relativo ao meio ambiente definindo a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira como patrimônio nacional.

Desta feita, é garantido o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não apenas à geração atual, mas também às futuras, definindo-se a função ecológica da propriedade.

Na perspectiva de garantir o Estado Constitucional Ecológico, a ministra relatora Carmén Lúcia, em seu voto, faz um intenso diálogo com renomados constitucionalistas como José Afonso da Silva, Gomes Canotilho, Raul Machado Horta, José Joaquim Gomes, Ingo Wolfgang Sarlet, Tiago Fensterseifer, entre outros juristas oriundos da Academia, do cenário internacional e da própria Suprema Corte.

Da construção do Estado Constitucional Ecológico, a senhora ministra fez questão de constar no voto a problemática do sentido jurídico-constitucional dos deveres fundamentais ecológicos, considerando ainda que, “depois de uma certa euforia em torno do individualismo dos direitos fundamentais, que, no nosso campo temático, se traduziria na insistência em prol da densificação de um direito fundamental ao ambiente, fala-se hoje de um comunitarismo ambiental ou de uma comunidade com responsabilidade ambiental assente na participação ativa do cidadão na defesa e proteção do meio ambiente”.

Pelos fundamentos apontados neste voto, considerando-se a insuficiência das justificativas apresentadas pelos órgãos responsáveis para fazer frente às alegações dos arguentes e aos crescentes níveis de desmatamento da Amazônia, a ministra relatora Cármen Lucia reconhece o estado de coisas inconstitucional.

Ademais, o voto contra a devastação da Amazônia resulta da gravidade do quadro de comprovada insuficiência estrutural das entidades públicas competentes para combater o desmatamento na Amazônia Legal, que inviabiliza a efetividade da implementação do PPCDAm.

A União, por sua vez, determina a ministra Cármen Lúcia, deverá, no prazo máximo de 60 dias, preparar e apresentar ao STF plano específico de fortalecimento institucional do Ibama, do ICMBio e da Funai e outros a serem eventualmente indicados pelo Poder Executivo federal, com cronograma contínuo, incluindo-se a dotação orçamentária, de liberação dos valores do Fundo Amazônia e de outros aportes financeiros previstos, e também de melhoria, aumento e lotação dos quadros de pessoal, em níveis que demonstram o cumprimento efetivo e eficiente de suas atribuições legais para o combate ininterrupto da devastação da Amazônia Legal e das áreas protegidas, conferindo-se, para todos os atos, a apresentação, os modos e os prazos para a execução do plano de fortalecimento institucional, com ampla transparência, instrumentos de participação social e demais instrumentos para garantia do controle social das medidas, das metas e dos resultados.

(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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