Comunidade indígena ameaçada de despejo consegue direito de habitação, mas problemas sociais persistem

Famílias buscam regularizar terra na Comunidade Nova Vida, na zona norte (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – Pelo menos 3.500 famílias de indígenas de 15 etnias do Amazonas e imigrantes da Venezuela estavam ameaçadas de despejo por uma reintegração de posse marcada para acontecer em novembro, na Comunidade Nova Vida, conhecida como “Cemitério Indígena”, localizado no bairro Nova Cidade, Zona Norte de Manaus.

A ocupação das terras foi realizada em 2018, há quatro anos, e logo se expandiu com a chegada de outros indígenas e imigrantes que fugiam da crise sanitária da Covid-19, da fome e da falta de oportunidades de trabalho no interior.

Considerado um sítio arqueológico, no local foram encontrados vestígios de urnas funerárias indígenas do ano de 2001. Desde então, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) protege a área, mas, segundo os indígenas que se assentaram lá, uma empresa de terraplanagem soterrou as urnas e os materiais de cerâmica com barro e asfalto.

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A área arqueológica possui em torno de 250m² e é atualmente ocupada por diversas casas, que avançam pelos morros e barrancos. Há, ainda, a existência de outras duas comunidades próximas, ocupadas por outros líderes comunitários.

Famílias buscam regularizar terra na Comunidade Nova Vida, na Zona Norte (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A ameaça de despejo causou revolta na comunidade, que se uniu e buscou a Defensoria Pública para salvaguardar todo o investimento feito ao longo dos quatro anos na comunidade. Igrejas, pequenas lojas, empresas e casas de pessoas que investiram tudo o que podiam seriam derrubadas na retomada, o que causaria insegurança habitacional para as 3.500 famílias que vivem lá.

A Defensoria Pública fez visita in loco e constatou que a expansão da comunidade tornaria a reintegração inviável. O defensor público Thiago Rosas convocou reunião com as lideranças indígenas do local e representantes do Ministério Público Federal (MPF), Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e governo do Estado para entrar em um consenso sobre a utilização da área.

“Iniciada a tratativa para construção do consenso num acordo, a parte autora da ação, no caso o Ministério Público Federal, vai pedir a suspensão desse mandado de reintegração de posse”, explica Rosas.

Foi definido na reunião, ocorrida no último dia 27 de setembro, que o MPF suspendesse a reintegração e em contrapartida um plano de compensação, solicitado pelo Iphan, seria implementado.  

Reunião realizada entre as entidades e os moradores da comunidade no dia 27 de setembro (Divulgação)

Morando há quatro anos no local, o Cacique Raimundo Ferreira da Silva, da etnia Kulina, participou da conversa com os órgãos responsáveis pelo local e contou que apesar da suspensão da reintegração, os comunitários do Nova Vida ainda enfrentam outros desafios de habitação.

“Aqui, a gente não tem encanação de água, vem tudo lá de cima e a gente puxou cano, mas estamos buscando regularizar com a Águas de Manaus. A energia mesmo chegou há dois meses”, diz.

Agora, com a autorização de residir no local, os indígenas buscam regularizar os bens básicos de serviços, como água e energia elétrica. Há meses os moradores buscam regularização de cadastro em programas sociais e nas concessionárias, mas foi apenas em agosto que a energia elétrica chegou na comunidade.

Com a promessa de pagamento de Tarifa Social, a maioria dos moradores se sustentam com os auxílios estaduais e federais, a Amazonas Energia realizou a instalação de postes e contadores de energia.

Segundo Kulina, a promessa da Tarifa Social não foi cumprida, mas em algumas casas a conta de setembro chegou acima dos R$1.000, além da cobrança da taxa de iluminação pública, mesmo com os postes instalados não possuírem lâmpadas instaladas.

Indígena Pinta Cuia mora no local há, pelo menos, três anos com a família (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“Quando anoitece, fica tudo escuro, a gente paga a conta de energia da rua, essa taxa, mas não temos iluminação nas ruas. E a empresa disse que a gente paga porque outras cidades de Manaus tem, então pagamos os deles, mas aqui mesmo não tem”, afirma a indígena Hileia Moreira Garcia, da etnia Pinta Cuia, que mora há três anos no local.

A REVISTA CENARIUM entrou em contato com a concessionária de energia, mas até a publicação desta matéria não obteve resposta.

Outras invasões são observadas no entorno da comunidade (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Outro problema enfrentado pela comunidade é o abastecimento de água e o saneamento básico, que envolve encanação e despejo de dejetos. Por detrás da comunidade passa um igarapé, que pode ser ainda mais contaminado com a falta de despejo adequado no local.

“A gente está tentando regularizar com a Águas de Manaus, mas eles falam que só vão colocar água quando a gente tiver o cadastro das casas, por enquanto estamos irregulares, mas já procuramos a empresa”, esclarece o cacique.

Em busca de oportunidades

Grande parte dos indígenas e imigrantes que moram na comunidade Nova Vida chegaram lá em busca de oportunidades. Maria de Los Angeles Martinez é indígena Warao da Venezuela e veio ao Brasil buscar emprego a convite de uma amiga, que já estava assentada na comunidade.

Maria tem 27 anos e trabalha fazendo pequenos serviços braçais e trabalhos pesados, para sustentar ela e os dois filhos, que moram em uma casa de madeira na invasão. Apesar das dificuldades, Maria diz estar muito mais feliz no Brasil.

Maria de Los Angeles Martinez e os filhos (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“Aqui, tenho oportunidades, a comunidade ajuda, me ajudaram a construir a minha casa e ajudam com comida e esses pequenos empregos que consigo”, afirma a imigrante. Os filhos, João Miguel e José Pereira, chegaram ao Brasil há duas semanas no País.

Saúde

Há três anos, a moradora Georgete Pereira chegou a Manaus para tratar um câncer de intestino. Ela conta que na aldeia onde morava não tinha assistência médica, sendo preciso vir para a capital para se tratar. Na comunidade, Georgete diz ter encontrado refúgio.

“Eu tive todo o apoio da Fundação Cecon e graças a Deus fui curada e estou aqui com minha família”, relata Georgete.

Georgete Pereira mora na comunidade e venceu a luta contra o câncer (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A esperança e a fé na comunidade são o alicerce da união entre os povos. Com mais de sete igrejas evangélicas espalhadas por várias ruas da comunidade, os indígenas se reúnem todos os sábados para fazer cantar músicas da tradição de cada etnia estampada na Oca localizada bem na entrada da comunidade.

Igreja Católica Santa Luzia recebe moradores de outras dez comunidades nas missas (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Além das igrejas evangélicas, construídas em alvenaria e bem organizadas, os indígenas ainda possuem uma Igreja Católica, construída em madeira, onde realizam missas com outras pessoas das comunidades no entorno, vindas de outros bairros, que visitam ao local e tem a oportunidade de além da reza, presenciar cânticos indígenas.

“Aqui, nossa igrejinha foi construída com todo o amor, a gente se junta para agradecer por tudo o que temos”, diz Hilela.

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