Crônicas do Cotidiano: Janelas da vida, janelas da alma

“Janelas. Como evitar ver nelas a metáfora do olho? Fiando-a, ela produz suas próprias submetáforas: tela do véu, ponto cego, estriamentos do bater de pálpebras, humores do corpo, esta lágrima, este sorriso, as nuvens do pensamento da tarde ou da manhã, e também a alma, cuja janela é o olho, que governa a visão” (Anne Cauquelin. A invenção da Paisagem. SP: Martins Fontes, p. 136-137, 2007). Por favor, não estranhem meu pensar em expressar esses sentimentos. Não é desencanto nem melancolia, mas uma reflexão sobre essas duas janelas que alimentam minha imaginação e, certamente, a de muitos: a janela emoldurada da televisão, que me remete para o mundo virtual e a janela do meu escritório de trabalho voluntário, que me oferece a visão de uma paisagem. Acho que em Anne Cauquelin encontrei arrumados quase todos os atributos das duas janelas que alimentam minha contemplação do mundo e meus devaneios, estes bem trabalhados em Gaston Bachelard, com quem me aconselho sempre sobre temas como insight, imaginação, contemplação, epistemologia da ciência e outras coisas mais.

A janela televisiva ocupa o lugar de vitrine do cotidiano, abordando os fatos da vida social, as relações econômicas e socioculturais, além da apresentação e explicação dos fenômenos que afetam o ambiente natural e social humanos. Para esse mister, deve seguir uma epistemologia própria da ciência da comunicação social, adotada pelo jornalismo e que consagra o pensamento racional e objetivo na construção do gênero discursivo. Ultimamente, esta vem alterando os seus procedimentos ao adotar, prioritariamente, princípios filosóficos dos sofistas, que privilegiam a doxa em detrimento da apuração e da reflexão, necessárias na busca da verdade pelo desvelamento do que se apresenta como fato ou fenômeno. Assim procedendo, o discurso jornalístico televisivo dá lugar à versão; e o conjunto de versões corroboram, ou não, para a narrativa, que será, por sua vez, ultrapassada por uma outra. O cuidado na construção da notícia é substituído pelo “furo” de “bastidor”, a palavra mais ouvida ao longo de uma perversa cobertura jornalística. Agindo com imediatismo, essa nova TV tenta aplacar o furor das novas mídias sediadas na internet. Essas coisas são bem mais observáveis na cobertura política e na cobertura econômica. Passa-se a impressão de que tudo é um jogo de azar ou de interesses, um salve-se quem puder, quando, na verdade, em ambas, o desvelamento dos fatos a elas relacionados e objeto da ação da atividade jornalística exigem conhecimentos específicos, nem sempre disponíveis à jornalistas por falha de formação ou porque a eles não é dado o tempo necessário para alcançá-los, daí o pastelão de senso comum, as improvisações, os desmentidos e ruídos de comunicação constantes. Esse modelo reflete a lógica do sistema e atende, perfeitamente, aos interesse dos patrocinadores, que exercem sub-repticiamente as suas formas de interferência no conteúdo e no modo de exposição que cativa espectadores, com vistas ao retorno do investimento feito em propaganda e marketing.

A janela da alma parece mais plácida. Por ser “real”, ela me dá um recorte do infinito para que eu possa compor a minha paisagem com a natureza encontrada por fora dos umbrais; tanto a primeira natureza, tipo Éden, como a segunda natureza, produzida pelo homem no seu fazer, na sua ganância, na sua arrogância de tudo desafiar. “Com a palavra duro, o mundo expressa a sua hostilidade e, em resposta começam os devaneios da vontade”, nos diz Bachelard, em “As Metáforas da Dureza” (A Terra e os Devaneios da Vontade, SP: Martins Fontes, p. 51, 2013). Dessa outra janela, como parte de meus devaneios, vejo centena de homens transformando a massa em concreto para fazer um prédio; carros enfileirados com motoristas irritados; um transeunte “louco” que grita impropérios para os trabalhadores da obra, que respondem em algaravia. Sem saber com quem está a razão, desvio o olhar, os olhos de minh’alma, e avisto o Rio Negro na sua viagem interminável rumo ao Rio Solimões. Em seguida, contemplo o Sol frio e belo que se põe lá no fim do jardim imaginado da minha paisagem. É tarde, a noite chega devagarinho…, hora de colocar o colírio nos olhos e pensar no dia de amanhã, o meu e o dos muitos que eu quero bem!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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