De Stonewall à Câmara Municipal de Manaus

(Reprodução/Internet)
Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium**

Junho é o mês do Orgulho LGBTQIAP+, em uma alusão aos protestos desencadeados por uma ação policial truculenta ocorrida no bar Stonewall Inn, em Nova York (EUA), estabelecimento conhecido por ter membros desta comunidade como seus fieis frequentadores. Este fato ocorreu em 28 de junho de 1959, a partir da violência de representantes do estado, no caso, a polícia estadunidense.

Mas como fatos históricos servem para analisarmos o presente, o quanto evoluímos ou retrocedemos como humanidade, precisamos pensar como a mão do estado continua violentando (de forma física e simbólica) corpos dissidentes da cisheteronormatividade. E dentre todas as violências que a população LGBTQIAP+ sofre no Brasil, uma que sempre me chamou atenção, em específico, é a perpetrada contra as pessoas trans.

O Brasil é o país onde pessoas trans mais morrem de forma violenta, e esse pódio vergonhoso existe há mais de uma década. São mortes que, em geral, se verifica na ação do agente o grau de ódio deste em relação ao que a vítima representa: um corpo que foge à binariedade imposta pela sociedade; porque gênero é uma construção social.

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Mas o que eu gostaria de ressaltar neste texto não são as violências físicas, mas aquelas que ferem a dignidade humana, afetam a plenitude do existir e que envolvem representantes do Estado (tal qual em StoneWall). No caso, envolvem membros do Poder Legislativo de Manaus. Em maio, um vereador de vários mandatos, deu entrada em um Projeto de Lei que “estabelece o sexo biológico como critério exclusivo para definição do gênero em regulamentos de competições esportivas realizadas no âmbito do município”, determinando que o sexo biológico será o critério definidor nos regulamentos de competições que recebam verbas públicas. O documento especifica em seu artigo 2º que “é vedada a participação de atletas transgêneros em categorias que não correspondam à identificação de sexo atribuída no nascimento”. O projeto surge após um outro vereador ter levantado, no mês de março, a defesa da mesma narrativa, que foi seguida e exaltada por outros membros do parlamento (basta assistir a sessão do dia 21/03/2023 disponível no canal do YouTube da Casa).

Não uso o termo construção de narrativa à toa, porque a mesma “polêmica”, com direito a falas lgbtfóbicas, vem sendo levantada em outras casas parlamentares país a fora. E sempre pelo mesmo perfil majoritário: homens, “conservadores” (termo problemático que rende um novo texto, por isso o uso das aspas) e que se identificam como heterossexuais. Em comum, o argumento de que estariam preservando o direito das mulheres cis (ou “mulheres legítimas”, como alguns de forma preconceituosa definem), pois estas teriam uma séria desvantagem ao competirem com mulheres trans. Dados científicos para sustentarem tais argumentos? Nenhum. Não há dados concretos nos discursos proferidos, tampouco no projeto em tramitação supracitado.

O documento traz em sua justificativa que o “objetivo desta Lei é manter o nível de competitividade sadia e equitativa nas competições esportivas”; que “um movimento ativista e muitas vezes político-partidário, baseado na chamada ‘ideologia de gênero’, tem utilizado o esporte para levantar bandeiras ideológicas e promover discussões sobre temas sensíveis”; que “Tal movimento defende, sem quaisquer comprovações científicas, que o indivíduo não nasce homem ou mulher, e que essa definição ocorre conforme a identificação de cada um”; e que “mesmo que um homem tenha passado por cirurgias e terapias hormonais para ganhar características femininas, muitas dessas vantagens permanecem”.

Ao ler o documento me vieram as seguintes reflexões: E a comprovação científica, que eles ressaltam no texto, cadê? Serve só para os tais ativistas levantadores de bandeiras ideológicas? Quem está levantando bandeiras ideológicas ao privar, sem comprovação científica, a população trans de competir nas categorias esportivas de acordo com o sexo com o qual se reconhecem? A que ou quem interessa essa narrativa?

Parece que para os verdadeiros defensores da “ideologia de gênero”, conceito que não existe, mas que se consagrou como narrativa de um determinado grupo “conservador”, tal requisito (ciência) não seria uma exigência para dar subsídio a um projeto que impacta a vida de tantas pessoas já expostas a uma situação de vulnerabilidade em decorrência de preconceitos e estigmas.

Podemos questionar ainda aos defensores da fragilidade da mulher cis alguns pontos: Quantas pessoas trans estão no topo do esporte? Qual lugar elas ocupam no ranking? Possuem altos patrocínios e investimentos na sua preparação física? Quantas pessoas trans você conhece que estão disputando em categorias profissionais? Provavelmente, você que lê esse texto, assim como eu, teve dificuldade para responder essas perguntas, porque o ambiente do esporte, assim como outros em nossa sociedade, ainda são hostis às pessoas trans. Elas não estão inseridas como seria o normal para qualquer sujeito detentor de direitos.

E antes que me acusem de também não estar apontando nenhuma pesquisa que vá de encontro à justificativa do projeto e ao argumento daqueles que o defendem, o Centro de Pesquisa pela Equidade de Gênero no Esporte do Canadá apresentou o relatório “Atletas transexuais e esportes de elite: Uma revisão Científica”, em que analisou estudos sobre o tema publicados no período de 2011 a 2021, englobando pesquisas nas áreas biomédicas e socioculturais. No documento, os pesquisadores afirmam que, do ponto de vista biomédico, não há evidências robustas de que existiria a tal vantagem de mulheres trans em relação às cis por conta dos hormônios e força muscular. Já no aspecto sociocultural, a pesquisa aponta que fatores sociais contribuem mais para o desempenho no esporte do que o nível de testosterona e que avaliar os níveis desse hormônio para excluir mulheres trans é perpetuar a longa história de policiamento dos corpos das mulheres no esporte.

Por fim, gostaria de lembrar que o combate à lgbtfobia deve ser um compromisso de todas, todos e todes. E que nossas irmãs trans possam exercer livremente seus direitos, inclusive o de participar de competições esportivas!

(*) Luciana Santos jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e em Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.

(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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