Destino do Pantanal nas mãos de desembargador de Mato Grosso

Bacia do Rio Paraguai fica no pantanal mato-grossense (Maike Toscano/Secom-MT)
Lucas Ferrante – Especial para Revista Cenarium**

A ciência serve para guiar a tomada de decisão responsável e o bem-estar ambiental não deve ser negociado, como apontou o periódico científico Nature este ano. Preocupantemente, o destino de um dos ecossistemas úmidos mais importantes do mundo ainda tem sido tratado como um debate de opiniões por parte do judiciário e não como uma questão técnica.

O Pantanal do Brasil se destaca como um bioma singular, fruto da convergência das características vegetais de três importantes biomas brasileiros: a Mata Atlântica, o Cerrado e a Amazônia. Reconhecido como patrimônio natural da humanidade pela Unesco e protegido pela Constituição de 1988 como patrimônio nacional, o que torna inconstitucional qualquer proposta que ameace a integridade do bioma.

O Pantanal ainda se destaca por sua extraordinária biodiversidade, abrigando não apenas uma rica variedade de flora e fauna, mas também diversas culturas, incluindo comunidades indígenas como os Kadiwéu, Guarani-Kaiowá (Chamacocos), Kinikinau e Terena. Destes povos, os dois últimos são remanescentes do povo Guaraná, anteriormente considerado extinto.

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Ademais, o Pantanal é o lar de quatro sítios Ramsar, áreas úmidas de importância internacional cujo colapso poderia acarretar consequências para além das fronteiras do bioma. Esta região é reconhecida como a maior área úmida tropical do mundo, e é importante ressaltar que, ao contrário do que afirmam algumas autoridades brasileiras, os incêndios e queimadas não são elementos naturais do ciclo do Pantanal, mas sim da pressão da pecuária sobre o bioma.

Em agosto de 2022, eu e o pesquisador e Prêmio Nobel, Philip Martin Fearnside, publicamos um parecer na revista Science, um dos maiores e mais respeitados periódicos científicos do mundo, apontando a inconstitucionalidade da lei 11.861/22, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Mato Grosso, que permitiria a pecuária nas “Áreas de Preservação Permanente” (APPs) e “Reservas Legais” (RLs), bem como em todas as demais áreas do Pantanal destinadas à conservação permanente.

O Parecer foi claro, apontando que a abertura de terras protegidas para o gado é incompatível com os objetivos do status de proteção. Ou seja, à pecuária é extremamente prejudicial a estas áreas, com capacidade de alterar a composição e riqueza de espécies.

O parecer ainda continua: “Argumentos falaciosos têm sido usados para expandir a pecuária no Pantanal, como as declarações de que o gado ajuda a evitar incêndios. Tais alegações não têm base científica, em contraste com os danos bem documentados causados pelo gado. A presença de gado em áreas protegidas mata árvores, fragmenta habitats e causa erosão que resulta em assoreamento de corpos d’água. A degradação da vegetação nessas áreas as torna mais suscetíveis a incêndios e esses incêndios devem aumentar ainda mais com as mudanças climáticas e podem levar o Pantanal além de seu limite para tolerar a degradação, resultando no colapso dos serviços ecossistêmicos desta importante região”.

No dia 8 de fevereiro, em sessão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a desembargadora Serly Alves votou pela aprovação da liminar que suspende a lei 11.861/22 com base no princípio da precaução. Os desembargadores Rubens de Oliveira Santos Filho, Antônia Siqueira Gonçalves, Guiomar Teodoro Borges, Irai Sparapan De Brito, seguiram a decisão da desembargadora Serly Alves, pelo mesmo motivo.

O argumento da precaução é fundamental para que se siga a legislação, incluindo a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário e também aprovada na forma de lei. A convenção estabelece que populações tradicionais precisam ser consultadas, prévia, livre e de forma informada antes da implementação ou aprovação de qualquer projeto que possa impactar seus territórios, como é o caso desta lei.

Na mesma sessão do dia 8 de fevereiro, o procurador Marcio Vidal pediu vistas do processo. O pedido de vista é uma solicitação de cópia do processo, para que o julgador possa fazer um estudo mais aprofundado. Na função crucial de baluarte da justiça e da integridade ambiental, o Desembargador Marcio Vital é instado a considerar seriamente as recomendações científicas atuais em seu pedido de vista, pela aprovação da liminar que suspende a lei 11.861/22.

Desembargador Márcio Vidal (Divulgação/TJMT)

Assim, como os desembargadores Juvenal Pereira da Silva, João Ferreira Filho, Paulo da Cunha, Maria Helena Póvoas e Clarice Claudino devem reconsiderar suas posições à luz das evidências científicas revisadas pelos pares e publicadas nos maiores periódicos científicos do mundo, a fim de não serem lembrados como aqueles que permitiram o colapso do Pantanal. A votação está 5 X 5, sendo o voto do desembargador Marcio Vidal a pena com o poder de pender a balança para o colapso do bioma ou um futuro sustentável.

Com o devido respeito e consideração à eminente posição e ao papel crucial que o desembargador desempenha na preservação da justiça e do equilíbrio ecológico, venho por meio desta, humildemente, instar a ponderação das recomendações científicas que enfatizam a necessidade de cautela na gestão de nossos preciosos recursos naturais. É notório que a permissão de pecuária em áreas protegidas no Pantanal traz consequências severas tanto para o delicado bioma quanto para as comunidades que nele residem e dele dependem.

Ao considerar a suspensão da lei que permite tais práticas, Vossa Excelência não apenas protege o presente, mas também se posiciona como um guardião do futuro. Suas decisões ecoarão através do tempo, servindo de baluarte contra as adversidades que nossas gerações futuras poderão enfrentar. A ciência não é apenas um corpo de conhecimento, mas também uma bússola que nos guia na direção da sustentabilidade e da coexistência harmoniosa com a natureza.

As gerações vindouras hão de olhar para trás e se lembrar com gratidão dos que tiveram a coragem e a visão de ouvir os especialistas, de agir com prudência e de colocar o bem-estar coletivo acima de interesses imediatistas. Confiamos que suas ações refletirão essa sabedoria e que a história registrará Vossa Excelência como um defensor intransigente do meio ambiente e da justiça socioambiental.

(*) Lucas Ferrante é biólogo e pesquisador, mestre e doutor em biologia e ecologia, coordenou a publicação no periódico científico Science, apontando a inviabilidade e ilegalidade da lei 11.861/22 e autor da denuncia no Ministério Público requisitando a revogação da lei. Atualmente é o pesquisador brasileiro que concentra o maior número de publicações nos periódicos Science e Nature, os dois maiores e mais importantes periódicos científico do mundo.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
Leia mais: Amazônia e Pantanal: STF retoma julgamento sobre preservação dos biomas

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