Em meio à precarização, motoristas de aplicativo em Boa Vista relatam que ‘pagam para trabalhar’

Motorista trabalhando por meio de aplicativo em Boa Vista (Wenderson Cabral/Reprodução)
Winicyus Gonçalves – Da Revista Cenarium Amazônia

BOA VISTA (RR) – Motoristas e entregadores que trabalham em serviços via aplicativo em Boa Vista (RR) têm sofrido bastante com condições de trabalho precárias e baixo rendimento com entregas e corridas. A REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA conversou com trabalhadores que relatam longas jornadas de trabalho para conseguir cumprir com os prazos e horários de forma correta, além da insegurança causada por acidentes.

Um desses casos é o de Renato Magalhães, de 38 anos, que trabalha como entregador há seis anos e, atualmente, é freelancer em um restaurante e uma lanchonete de Boa Vista aos fins de semana. Ele conta que começa a realizar as entregas a partir de 11h da manhã. São em média, 13 horas de trabalho diários, e o tempo de deslocamento faz com que ele fique longe de casa quase o dia todo. Quando retorna, já passa da meia-noite e está exausto.

Magalhães recebe do aplicativo, em média, R$ 400 a R$ 500 por mês – dinheiro que usa para complementar a pensão do filho, de 8 anos – e arca sozinho com os custos de transporte e alimentação ao longo do dia. “Em alguns casos, vem entrega de 7 a 10 quilômetros (km) para realizarmos. E, às vezes, paga R$ 8 por 7km. Não compensa. Se o cara ficar 30 minutos esperando sair o pedido do restaurante, perde uma hora para fazer uma entrega”, conta.

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Durante a pandemia de Covid-19, a jornada de trabalho do entregador por aplicativo disparou, uma vez que profissionais como Magalhães tornaram-se essenciais em todo o País para distribuir alimentos, remédios e compras feitas pela internet. Mesmo assim, ele conta que sua remuneração caiu.

Com a demanda ainda em alta, as principais empresas do setor – iFood, Rappi e Uber – ampliaram a quantidade de entregadores nas ruas, acirrando a “disputa” por corridas. Por isso, Magalhães, agora, trabalha em dois locais para ganhar o mesmo que recebia há alguns meses atrás. Há dois anos, a sua meta diária de R$ 200 era viável. Hoje, está difícil chegar a R$ 100, conta.

“Eu mudei de casa, tive que vir morar em um bairro mais afastado, porque não dava conta do aluguel. Dependendo do dia, eu faço o cálculo e vejo que estou pagando para trabalhar. Não sobra muita coisa”, complementa.

“Nossas vidas não têm importância nenhuma para essas empresas”, diz Magalhães. “O que interessa para elas é o cliente. Somos descartáveis. Nós nos matamos de trabalhar, mas não conseguimos pagar as contas”, finaliza.

Motoristas de aplicativo

Aos 48 anos, Alessandro Rosa também enfrenta dificuldades para sobreviver com o salário de motorista de aplicativo. Ele perdeu o emprego que tinha como motorista de uma empresa de transporte, em Boa Vista, há três meses, e precisou achar uma forma de complementar as contas de casa. Atualmente, ele está ganhando entre R$ 60 e R$ 80 por dia em corridas.

Alessandro Rosa faz corridas em bairros nobres de Boa Vista (Wenderson Cabral/Reprodução)

“As empresas aumentaram os preços das corridas, mas não na mesma proporção do preço da gasolina. Querem pagar R$ 13 para um percurso de 18km. Isso não cobre nem a gasolina que colocamos no carro. Eu permaneço aqui fazendo as corridas, mas teve muita gente que deixou de fazer corridas por aplicativo, aqui, porque não compensava mais”, diz.

Entregadores e motoristas que atuam por meio de plataformas digitais recebem, respectivamente, R$ 3,4 e R$ 1,9 a menos, por hora, do que seus correspondentes que não utilizam aplicativos de corridas nem outros instrumentos informacionais e comunicacionais digitais para trabalhar, ainda que trabalhem mais tempo para obter essa renda. Essa é a situação revelada pelo primeiro levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre teletrabalho e trabalhadores via plataformas digitais. A pesquisa foi divulgada em outubro.

Para o sociólogo e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Linoberg Almeida, a dependência, cada vez maior, de motoristas de aplicativo e entregadores, após a pandemia, evidenciou a precarização das condições de trabalho da categoria, não só em Boa Vista, mas em todo o País. Para fins fiscais, eles são autônomos e, em geral, não possuem proteções trabalhistas ou seguros contra acidentes, como explica o especialista.

“As melhorias de condições de trabalho tanto para motoristas de aplicativo quanto para entregadores passam por três pontos: valorização do trabalho, fim de jornadas extenuantes e proteção social. Esses requisitos precisam ser debatidos. É preciso que os trabalhadores e as empresas montenham uma bancada de negociações, junto com o Ministério do Trabalho, em uma mesa tripartite, para construir um processo que possa regular decentemente a função”, avalia.

Direitos

O advogado Marllon de Oliveira, especialista em Direito Trabalhista, analisa que entregadores e motoristas de aplicativo, normalmente, são vinculados a uma empresa que faz o intermédio com o aplicativo. Para a caracterização do vínculo de emprego, é necessário o preenchimento de cinco requisitos: subordinação, habitualidade, onerosidade, pessoalidade e pessoa física.

Na avaliação do advogado, essas empresas exigem pessoalidade, pois o entregador ou o motorista de aplicativo tem cadastro pessoal e não pode enviar outra pessoa em seu lugar; habitualidade, porque se cobra uma frequência de dias trabalhados; subordinação, pois se cobra horários e números de entregas ou de corridas, e há pagamento de remuneração.

Advogado Marllon de Oliveira, especialista em Direito Trabalhista (Wenderson Cabral/Reprodução)

“Na prática, os entregadores de aplicativos são empregados, pois, em muitos casos, há até punições caso mantenham baixa frequência de entregas, havendo subordinação e habitualidade. Igualmente, até pelo fato de haver cadastro dos entregadores, há pessoalidade, portanto, são devidos todos os direitos trabalhistas previstos na legislação”, analisa.

O advogado acrescenta que diversos tribunais pelo País têm firmado entendimento sobre reconhecimento do vínculo de emprego. “Caso um entregador não tenha trabalhado com carteira assinada, deve propor uma ação na Justiça, visando reconhecer o vínculo de emprego e também cobrar as verbas devidas como FGTS, 13° salário, férias, adicional de periculosidade, horas extras, adicional noturno, dentre outras”, pontua.

Acidentes

A alta demanda por corridas e entregas via aplicativos anda lado a lado com uma estatística alarmante em Boa Vista. De acordo com dados cedidos pela Secretaria de Estado de Saúde (Sesau) à CENARIUM, cerca de 43% das vítimas de acidentes de trânsito internadas no Hospital Geral de Roraima (HGR), principal unidade hospitalar do Estado, são motociclistas que trabalhavam para aplicativos de transporte ou delivery ou motoristas de aplicativo.

Ainda de acordo com os dados, as internações de condutores de carro e de motocicleta que trabalhavam para serviços via aplicativo entre 1º de janeiro e 23 de novembro deste ano no Hospital Geral de Roraima (HGR) subiram 16,9% na comparação com o mesmo período de 2022. Até 23 de outubro, 419 vítimas de acidentes de trânsito envolvendo carros ou motocicletas de serviços de aplicativo deram entrada na urgência e emergência do hospital.

Hospital Geral de Roraima, maior unidade hospitalar do Estado (Wenderson Cabral)

Rodrigo Agostinho, diretor médico do HGR, explica que a maioria das internações registradas no pronto-socorro envolve pacientes com traumas leves. Mesmo assim, o crescimento dos atendimentos foi geral e também houve um aumento de casos mais graves, como de traumatismo craniano. “Outras portas de urgência estão sobrecarregadas com esses casos de menor importância. Não temos estatística exata, mas sabemos que a imensa maioria, ocorre com pessoas que trabalham principalmente com motociclistas de entrega”, conclui.

Boa Vista não tem uma legislação municipal para regulamentar o transporte de aplicativo por motos. Isso porque, desde março de 2018 a Lei 13.640 permite a modalidade em todo o território nacional. Apesar disso, a legislação não exime o município de regulamentar o serviço, conforme consta no artigo 11-A. “Compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”.

Fluxo de carros na Avenida Ataíde Teive, uma das mais movimentadas de Boa Vista (Wenderson Cabral/Reprodução)
Regulamentação

Robert Gonçalves, 33, trabalha há 13 anos como motoboy. Ele conta que desde que a modalidade de transporte por aplicativo por moto chegou a Boa Vista percebeu que o número de acidentes aumentou drasticamente. “Tem acontecido muito acidente. Muitos dos entregadores ou dos mototáxis não têm preparação nenhuma, não têm curso nenhum, nem equipamento de segurança. Alguns tiram carteira com 18 anos e já vão para essa selva de pedra. E o poder público tem sido omisso a toda essa situação”, avalia.

Robert também acredita que as políticas de regulamentação e mobilidade urbana voltadas para os aplicativos de transporte são a saída para que os números de acidentes caiam. Ele relata que a falta da intervenção do município tem deixado a atividade cada vez mais precarizada.

“Não somos contra o trabalhador. Mas precisamos resolver essa situação, que está muito complicada. O aplicativo não liga para a vida do ser humano, ele quer mão de obra disponível. Dizem que gerou emprego, mas não foi assim. Ele [o sistema de aplicativos], simplesmente, pegou um mercado que estava pronto, tomou para si, implementou o sistema e todo mundo se viu obrigado a trabalhar para ele. Se morrer um, ou machucar, ou sequelar, no dia seguinte tem outro para colocar no lugar”, afirma.

Avenida Venezuela, na Zona Oeste de Boa Vista (Wenderson Cabral/Reprodução)

Questionada pela CENARIUM sobre a possibilidade de uma regulação da atividade, a Prefeitura de Boa Vista informou que adota “uma série de ações educativas” com o objetivo de garantir a segurança dos motociclistas. A reportagem também tentou contato com as empresas Ifood, Rappi, Uber, 99 e InDrive para responder aos relatos dos entrevistados, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.

Leia mais: Uber terá que assinar Carteira de Trabalho de motoristas
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Adriana Gonzaga
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