‘Estamos num local que há muito para ensinar’, afirma novo diretor do Museu da Amazônia

O italiano Filippo Stampanoni Bassi participou da fundação do Museu da Amazônia ao lado de Ennio Candotti. (4.jan.24 - Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)
Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Promover ainda mais a função social do Museu da Amazônia (Musa), tornando-o mais acessível à população, e expandi-lo como referência na articulação de pesquisas científicas na região. Esses são os planos do doutor em Arqueologia Filippo Stampanoni Bassi, 43 anos, nascido na Itália, que assumiu a missão de dirigir a instituição após a morte do fundador, o físico italiano Ennio Candotti. Em entrevista exclusiva à REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, ele fala sobre os próximos passos do museu e o legado deixado pelo ex-diretor, que morreu no último dia 6 de dezembro.

Filippo Stampanoni Bassi assumiu a direção do Musa no último dia 22 de dezembro. (4.jan.24 – Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

Assim como seu antecessor, Stampanoni, sócio-fundador do Musa, é um apaixonado pela Amazônia. E tudo começou a partir da série italiana de livros infantis “Mister No”, que contava as aventuras de um ex-soldado que serviu no Exército dos Estados Unidos e mudou-se para Manaus. O arqueólogo seguiu os passos do seu ídolo e veio morar na capital amazonense, onde conheceu Candotti e participou da fundação do espaço que é referência na divulgação científica e na educação cultural da Amazônia.

Nesta entrevista à CENARIUM, o doutor em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), com área de pesquisa em Arqueologia Amazônica, citou os projetos de divulgação científica dos quais o Musa faz parte — como o “Amazônia Revelada”, em parceria com a National Geographic*, e a série “Amazônia, do Macro ao Micro”, produzida junto à Univesp TV e à TV Cultura — e falou da importância de financiamentos científicos e da presença da população para a sobrevivência financeira da instituição.

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Stampanoni é doutor em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), com área de pesquisa em Arqueologia Amazônica. (4.jan.24 – Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

Confira a entrevista:

REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA: Ennio Candotti foi um defensor apaixonado pelo estudo e preservação da biodiversidade amazônica. Como você pretende honrar e ampliar esse compromisso?

Filippo Stampanoni Bassi: Em termos gerais, a gente segue a mesma linha de raciocínio e a mesma luta. No fundo, a gente compartilha, todos nós do Musa, os mesmos ideais. Agora, obviamente, todos os dias os desafios que a gente enfrenta são diferentes, e a gente precisa repensar cotidianamente o museu. Hoje em dia, eu diria que a diretriz principal é aquela de tornar o museu sempre mais acessível à população do entorno e à população em geral. A gente entende que um museu privado como o Musa, que não tem financiamento público, precisa encontrar uma medida que permita a sobrevivência e, ao mesmo tempo, abrir ao máximo o número de pessoas para que vivam esse espaço, não apenas como um momento de lazer, mas como a sensação sempre maior de pertencimento a esse local, seja esse local como o Musa ou em uma lógica fractal como a Amazônia. O Musa representa algo muito maior e muito mais complexo.

Crianças na exposição de aracnídeos do Museu da Amazônia (Musa). (21.dez.21 – Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

RVA: ⁠Como o Musa se mantém hoje? O repasse de verba é feito por quem? Há alguma participação de governo estadual ou municipal?

FSB: O Musa já teve financiamento do Fundo Amazônia; boa parte das instalações foi criada a partir desse financiamento. Também tem apoiadores que nos ajudaram, por exemplo, por meio da Lei Rouanet, a captar recursos para fazer as exposições mais importantes, que foram criadas ao longo do tempo. Nesse caso, a gente agradece, por exemplo, à Bemol e à Fogás, que foram nossos principais apoiadores das exposições. Mas também, ao longo do tempo, criamos parcerias e convênios com universidades locais, como a UEA [Universidade do Estado do Amazonas], com a qual tivemos um convênio de vários anos, e recebemos repasses financeiros que nos ajudaram a melhorar nossa condição, dos quais recebemos o último repasse há pouco tempo. Assim, procuraremos estender, no futuro, essas relações, mas não temos um financiamento fixo de dinheiro público. Nossa entrada, que garante nossa sobrevivência, é a visitação, é o nosso público. Nossa folha é paga principalmente pelos visitantes. Todas as atividades que conseguimos fazer para além disso são projetos que procuramos a partir, por exemplo, de agências de financiamento e pesquisa, como Fapeam, CNPq, Capes, ou também participando de outros editais e procurando outros tipos de financiamentos, como, por exemplo, esse da National Geographic, que é um financiamento privado dos Estados Unidos que captamos junto com outros parceiros.

RVA: Sobre a questão da importância social e científica, como é que você pretende trabalhar isso agora?

FSB: A gente está aos poucos melhorando também as estruturas, né? Ali estava a exposição da mandioca; agora vai ter uma reconfiguração. A gente está numa área, a Reserva Duque, que é provavelmente a parcela de floresta mais estudada, graças ao Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia], que se tem na Amazônia. Esse é um enorme patrimônio de conhecimento e um inesgotável local de pesquisa. E a gente tem a clareza de que não é só o Musa que vai fazer a diferença pesquisando essa área, mas a gente precisa disponibilizar, facilitar as pesquisas aqui nessa área. Esse é o nosso desafio em relação à pesquisa aqui na Reserva Duque.

Vitórias-régias em lago do Museu da Amazônia (Musa). (6.jan.23 – Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

RCA: E você acredita que a sociedade local tem consciência da importância e hoje dá valor para a importância que o Musa tem?

FSB: Eu acredito que uma parte da sociedade entende claramente a importância da Amazônia. No entanto, eu acho que essa importância é um conhecimento que vai aumentando ao longo dos dias. Ou seja, ninguém de nós sabe exatamente quão importante é a Amazônia. A gente, todo dia, aprende um pouco mais quanto ela é importante. Eu acho que esse é um processo contínuo. A Amazônia, todo dia, nos ensina uma coisa nova que faz com que ela seja mais importante ainda. Muitas vezes, a população acaba meio que conhecendo um ou outro aspecto e achando que são os únicos. Na realidade, a gente sabe e a gente corre atrás da floresta para tentar entender o quão profunda é a importância dela. É uma coisa que nunca ninguém diz, ‘ok, agora eu entendi’. A gente tem que avançar toda vez. E tem uma questão que eu acho muito importante. Hoje em dia, a população amazônica é sempre mais urbana. Se a gente for ver a composição da população dos Estados da Amazônia Legal, a gente percebe que a maior parte mora em cidades. E o que está acontecendo é que, nas cidades, você tem uma vida que te distancia um pouco mais da realidade, da vivência da floresta. E querendo ou não, a maior parte da população que mora na cidade tem um peso forte em relação às políticas para a Amazônia. É ela que é o grande tomador de decisões sobre o futuro da Amazônia. Então, a meu ver, é muito importante que, nas cidades, tenham lugares como o Musa, porque a gente precisa deixar atualizada e engajada a população urbana também. Porque, no fundo, ela tem um peso muito forte na hora de tomar as decisões políticas sobre o futuro da Amazônia.

RCA: Como é que ficou o Musa em relação à segurança? Recentemente foi registrado um assalto aqui, em que um homem entrou armado. Como é que está essa relação? Existe algum apoio da Prefeitura de Manaus?

FSB: A gente aumentou nosso nível de organização relacionada à segurança interna do museu e, desde então, não tivemos mais acontecimentos. É óbvio que isso depende da capacidade de articular vários aspectos. E aí, a gente teve apoio das diferentes polícias, tivemos apoio do Inpa, tivemos apoio da Prefeitura, ou seja, a segurança na Reserva Duque, ela não pode ser pensada exclusivamente como, vamos dizer assim, uma tarefa do Inpa ou por essa parte do Musa. Ela tem que estar presente a vários níveis, em todos os atores que estão envolvidos, porque ela depende diretamente do crescimento urbano, das políticas públicas, da qualidade de vida que tem a população ao redor da Reserva Duque. Então, assim, não é apenas um problema de segurança, segurança pública, ou de segurança de uma área com a importância de uma reserva tão fundamental, mas é um problema que investe toda a sociedade de Manaus. E aí, soluções douradoras se encontrarão quando realmente todos os órgãos, todos os cidadãos de Manaus tenham bem claro em mente que isso é uma tarefa comum e que a gente precisa ajudar o Musa, precisa ajudar o Inpa, precisa ajudar a Prefeitura e precisa fazer com que se pense nessa região, não como uma área esquecida de Manaus, mas como uma área que sempre mais tem acesso à qualidade de vida, à cidadania, porque isso influencia diretamente aspectos de segurança, de violência e garante mais segurança à reserva.

Visitantes no topo da torre de observação do Museu da Amazônia. (6.jan.23 – Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

RCA: Qual a mensagem que você gostaria de transmitir à comunidade local e aos visitantes em relação à importância da preservação da Amazônia e do compromisso com a ciência e a educação?

FSB: Eu acho que, assim, a preservação da Amazônia é um tema muito importante para hoje e para o futuro. Não somente para uma questão ambiental, mas porque a Amazônia em si, ela é o berço e ela é o multiplicador de experiências de vida e de diversidade de ideias, de modos de vida, que são a melhor estratégia para enfrentar um futuro que a gente não conhece. Qualquer empresa, sabe, que para ter mais futuro precisa diversificar. A Amazônia é um berço de uma enorme biodiversidade e de uma enorme diversidade cultural. A gente tem que entender que esse patrimônio que existe, ele tem que servir para a gente criar novas ideias, para a gente repensar os modos de vida que a gente tem. A gente tem que considerar a floresta como uma enorme oportunidade e uma coisa que temos nós aqui. Então, assim, a história das populações indígenas, ela é o fruto de um acúmulo de conhecimento. E a gente não pode levar isso como se fosse de pouco valor. A gente tem uma exposição sobre a mandioca, né? Se a gente parar para pensar, a mandioca e toda a tecnologia envolvida para transformar essa planta venenosa em alimento, assim, é uma conquista impressionante para a humanidade. Por quê? Porque é uma tecnologia complexa, é uma tecnologia que hoje em dia alimenta mais de 800 milhões de pessoas no planeta, dividida em diferentes continentes entre Américas, África e Ásia. Óbvio, se come também na Europa, mas nesses continentes ela é um staple food, uma base alimentar. E essa é uma tecnologia indígena. Então, como essa, existem muitas outras ideias que os povos indígenas deixaram para o mundo. E a gente não pode ser tão cego de estar comendo o nosso futuro, destruindo o nosso futuro e sem olhar em todas as oportunidades. E aí eu acho que também a gente tem que pensar no bem viver, no modo de viver bem essa região. E isso envolve questões sociais, envolve também uma mudança do nosso modo de imaginar nossa relação com os outros seres. E aí o Musa tem um mote, uma frase, que é viver juntos. Eu acho que isso continua. Isso envolve ciência, envolve ciência no sentido de um tipo de conhecimento, mas envolve também a ciência indígena. Outro conhecimento envolve a ciência das plantas, que também desenvolveram ao longo dos milhões de anos enormes capacidades, e dos animais. Ou seja, estamos aqui, como dizia o professor Ennio, num local que há muito para ensinar e para ensinar a gente a viver melhor. Então essa é a principal importância da Amazônia.

(*) Projeto “Amazônia Revelada”, financiado pela National Geographic, para mapear e identificar sítios arqueológicos em diferentes partes da Amazônia.

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