Ex-presidente do Ibama afirma que corrigir as emissões do Brasil é um caso de polícia

Suely Araújo, ex-presidente do Ibama, fotografada durante a COP26, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas (Felipe Werneck/Observatório do Clima)

Com informações do Infoglobo

GLASGOW – Uma das maiores especialistas do País em legislação ambiental, Suely Araújo, é a arquiteta de uma trama de processos judiciais na área. A ideia, diz, é tentar obrigar o governo federal a implementar políticas públicas e, essencialmente, cumprir a lei. 

Após deixar o cargo de presidente do Ibama, instituição que chefiou de 2016 a 2018, a advogada vem dando apoio técnico a indivíduos e organizações que se veem prejudicados pela política atual do Brasil. Como especialista sênior da coalizão de ONGs Observatório do Clima, Araújo conseguiu articular um cerco jurídico contra a política ambiental do governo do presidente Bolsonaro.

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A pressão já começou a render frutos, como no caso de um processo contra a tentativa do governo de reduzir a ambição do País na meta de corte emissões de CO2, manobra apelidada de “pedalada climática”.

Em entrevista ao GLOBO durante a COP26, a conferência do clima de Glasgow, Araújo fala sobre o desabrochar do movimento global da “‘litigância climática”, que busca defender o meio ambiente no Judiciário quando os poderes Executivo e Legislativo o ameaçam.

O que é o trabalho com litigância climática que a senhora está desenvolvendo?

Há várias ações das quais o Observatório do Clima está participando. No início de 2020, organizamos uma área de apoio à litigância climática e ambiental. Atuamos no apoio a partidos políticos litigando no Supremo, apoiando outras ONGs. Uma das nossas ações é relacionada ao uso do Fundo Amazônia, outra relacionada ao uso do Fundo Clima no primeiro grau da Justiça federal. Também damos apoio técnico a uma ação de jovens ativistas climáticos sobre a pedalada climática.

No dia 26, entramos com uma ação na Justiça federal do Amazonas exigindo um plano nacional sobre mudança do clima atualizado, porque o plano que existe é de 2008, e a lei da Política Nacional de Mudança Climática (PNMC) é de 2009. O novo plano precisa contemplar a PNMC, precisa contemplar o Acordo de Paris, que é de 2015, e acolher a perspectiva de 1,5°C de aumento de temperatura, tomando em consideração o último relatório do IPCC. Essa é a demanda judicial.

A demanda é que esse plano seja feito de forma participativa. Essa ação foi proposta a semana passada, foi acolhida e vai correr. A juíza marcou uma audiência de conciliação no dia 25 de novembro, onde vão estar o Observatório do Clima e representantes do governo para tentar negociar de algum tipo de conciliação. Em termos de Judiciário essa primeira análise foi muito rápida, e nós estamos bastante esperançosos de que vamos conseguir compromissos do governo por essa ação, seja nesta fase inicial ou quando a juíza resolver sobre a matéria.

Essa é a primeira ação em todo esse esforço de litigância em que o Observatório do Clima está como autor. E isso tudo tem muito a ver com o que está sendo debatido aqui em Glasgow, porque o que mais se ouve em cada mesa que se senta aqui, nas palavras dos jovens e da Greta Thunberg é que tem muita promessa, mas poucos dizem como vão fazer.

Essa ação civil pública proposta na Justiça federal do Amazonas é nessa linha. É obrigar o governo a planejar para parar de apenas falar que vai fazer, e ele vai ter que mostrar como vai fazer nos diferentes setores, pegando toda a economia. Vai ter indicar como vai ser a mitigação, como vai ser a adaptação, quais são os diferentes planos setoriais, os planos nacionais de desmatamento, o plano Agricultura de Baixo Carbono. Tudo isso entra dentro de um metaplano, que é o Plano Nacional sobre Mudanças do Clima. É assim que é previsto na legislação hoje.

Existe precedente de a Justiça brasileira obrigar o governo a corrigir política ambiental assim em grande escala? Quais foram as experiências de sucesso?

Existem precedentes pontuais, mas não com essa abrangência em termos de meio ambiente. Nós temos consciência da dimensão dessa demanda. Mas na petição nós mostramos também precedentes internacionais. No México, teve um precedente bem recente. [A Justiça mexicana obrigou o governo a corrigir sua meta de redução de emissões]. A litigância climática está se espalhando no mundo inteiro, e o Brasil está junto. Nós não estamos atrasados, e nossas ações são similares ao que está acontecendo em outros países. Os tribunais como arena de avanços na questão climática e de avanços tendo em vista a concepção do Acordo de Paris são uma questão atual. Não é apenas o Observatório do Clima trabalhando nisso. Existe uma rede de atores da sociedade civil, e o Ministério Público tem ajudado. 

No Brasil isso também é um caminho importante, necessário e sem volta. E eu não acredito que isso vai ser assim só durante o governo Bolsonaro. É verdade que neste governo a gente precisa, sim, recorrer mais à Justiça, mas é uma questão mais ampla. A Justiça precisa tentar garantir o que está na legislação, e isso também vale para os acordos internacionais, porque, quando eles são internalizados num País, eles têm força de lei. O descumprimento do Acordo de Paris por parte do governo federal é ilegal dentro do próprio Brasil.

A Justiça foi eficaz na litigação contra o ex-ministro Ricardo Salles? Ele é alvo de litígio ainda?

Ele é. O Ministério Público tem ações contra ele. As associações de servidores ambientais têm ações contra ele como pessoa. Mas o Observatório do Clima está focando suas ações nas omissões em termos de políticas públicas. Se a política pública não está rodando e causa um problema relevante, nós vamos lá e tomamos as medidas judiciais cabíveis.

Mas no caso da acusação de fraude no plano de manejo na Várzea do Rio Tietê, em São Paulo, Salles foi absolvido em segunda instância. A Justiça está produzindo jurisprudência favorável à causa ambiental?

Já existem decisões importantes pró-meio ambiente em diversos temas. O próprio Supremo tem afastado algumas leis estaduais inconstitucionais em termos de licenciamento ambiental. Nós temos um conjunto de precedentes judiciais favorável na linha protetiva. É importante falar que a ação às vezes gera efeito sem a decisão. Isso ocorreu, por exemplo, no caso da pedalada climática. Seis jovens ativistas climáticos, lindos de morrer, do Engajamundo e da Fridays for Future Brazil, entraram com uma ação pedindo para corrigir a pedalada, e nós demos apoio técnico e jurídico. Quando o governo chegou aqui e propôs mudar de 42% para 50% a promessa de cortes de emissão em 2030, corrigiu a pedalada. Para mim, está querendo se livrar da ação judicial. Ele não corrigiu a ilegalidade, porque a NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada] continua sem ambição, com ambição zero.

O Brasil vai depender só da Justiça para ter ação climática, sem nenhuma ação voluntária do governo?

Não. Mas a via judiciária é uma via necessária para você garantir a concepção das políticas climáticas. É uma via necessária e uma via irreversível, porque faz parte das ferramentas que a sociedade tem para garantir que as políticas públicas sejam executadas.

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