Impunidade na Amazônia: sem condenações, sangue continua sendo derramado pela defesa do território

Floresta Amazônica queimando (Christian Braga/Greenpeace - tom de vermelho alterado em edição)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – A constância nas ameaças e ataques contra indígenas e defensores da Amazônia faz parte do cenário de insegurança e impunidade que assola as populações na Região Norte, mesmo após repercussão internacional dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari, no município de Atalaia do Norte, no Amazonas (distante 1.136 quilômetros de Manaus), em junho do ano passado.

Após um ano dos assassinatos de Dom e Bruno, três pescadores indiciados pelo crime confessaram ter esquartejado e enterrado os corpos. Amarildo da Costa de Oliveira, Jeferson da Silva Lima e Oseney da Costa de Oliveira falaram à Justiça, no mês de maio de 2023, e, agora, aguardam a decisão do juiz do caso, Fabiano Verli, para saber se irão a juri popular. Parte da celeridade do processo só ocorreu após campanha envolvendo entidades internacionais, que colocaram o Brasil no ponto central da tempestade.

Floresta Amazônica queimando (Christian Braga/Greenpeace/Tom de vermelho alterado em edição)

Mas, diferente do caso envolvendo o indigenista e os jornalistas, outros crimes na Amazônia continuam impunes. Como o de Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Funai por 12 anos, assassinado com um tiro na nuca, na frente da esposa e da enteada, enquanto trafegavam em uma rua de Tabatinga (distante 1.106 quilômetros) em setembro de 2019, no Amazonas. Maxciel também trabalhava na proteção territorial do Vale do Javari, chefiando por cinco anos o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Regional e era alvo de constantes ameaças.

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Da esquerda para a direita: o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips (Arte: Mateus Moura/Revista Cenarium)

No mesmo ano da morte de Dom e Bruno, meses antes, no Pará, o ambientalista José Gomes, o “Zé do Lago”, 61, a esposa Márcia Nunes Lisboa, 39, e a jovem Joene Nunes Lisboa, 17, foram assassinados. Os corpos foram encontrados com marcas de tiros e em estágio avançado de decomposição, em janeiro daquele ano. Até o momento, um ano e meio após os crimes, ninguém foi preso. A família trabalhava em prol da proteção de quelônios e tinha a tradição de soltar os répteis, anualmente, na natureza.

A reportagem da REVISTA CENARIUM entrou em contato com o delegado do Alto Xingu, José Carlos Rodrigues, para questionar sobre as investigações, porém, ele não respondeu e pediu que questionamentos fossem enviados por meio da assessoria, que respondeu: “A Polícia Civil informa que o inquérito policial que investiga o caso foi concluído dentro do prazo legal e remetido à Justiça”, sem citar nomes ou responsabilidades. Também tentamos contato com o Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA), que até o momento não respondeu.

Família morta em chacina, em São Félix do Xingú (Reprodução/Redes Sociais)

País letal

O Brasil é o quarto País mais letal para defensores do meio ambiente. Segundo o último levantamento do Global Witness, foram 20 casos registrados contra ambientalistas em 2020. A região amazônica é marcada por um histórico de luta e derrame de sangue de ativistas e povos originários, sacrificados pela preservação ambiental e territorial. O governo, seja ele em qualquer esfera, não alcança esses povos e falha em suprir necessidades básicas de segurança de quem vive e trabalha nas regiões dominadas pelos crimes ambientais, tráfico de drogas e territórios.

Foi lutando contra invasões, roubo de madeira e combatendo grileiros, no Pará, que José Cláudio Ribeiro, 52, e Maria do Espírito Santo, 51, foram mortos no sudoeste do Estado, vítimas de uma emboscada. Em 2011, o casal foi assassinado no Assentamento Agroextrativista, em Nova Ipixuna, no Pará, alvejados por dois pistoleiros identificados como Lindojhonson Silva e Alberto Nascimento, que estavam escondidos na mata.

O caso ganhou repercussão internacionalmente, mas até hoje apenas os pistoleiros estão presos. Lindojhonson chegou a fugir da prisão e ficou um período foragido, mas em 2020 foi recapturado. Ele e o comparsa Alberto foram condenados a 42 e 45 anos de prisão, respectivamente. O irmão de Lindojhonson, o fazendeiro José Rodrigues Moreira, foi apontado como mandante dos crimes. Ele chegou a ser condenado a 60 anos de prisão, em julgamento ocorrido em dezembro de 2016, em Belém, porém, segue foragido 12 anos após o crime.

José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, mortos em Nova Ipixuna, no Pará (Reprodução)

Grande parte dos homicídios ocorridos na Amazônia acontecem após contínuas ameaças contra as vítimas. Dados do relatório “Na Linha de Frente: Violência Contra Defensoras e Defensores de direitos humanos no Brasil” comprovam isso. “Ameaças não apuradas ou sem responsabilização – assim como ameaças que deixam de ser registradas por receio de perseguição dos agentes policiais – podem ser fatais para as defensoras e defensores de direitos humanos”, pontua trecho do estudo.

Em síntese, a impunidade tem sido recorrente no que se refere às ameaças. É urgente o estabelecimento de medidas de proteção que garantam a sobrevivência e a manutenção da luta de pessoas com esse perfil e vulnerabilidade”, afirmam no texto.

Como lembrou a REVISTA CENARIUM na edição de junho de 2022, a Amazônia já foi palco do assassinato de outros defensores da floresta e seus povos, como o caso de Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, importante líder seringueiro, morto em dezembro de 1988, no Acre, após inúmeras ameaças.

Capa da Revista Cenarium, edição de junho de 2022 (Reprodução/Revista Cenarium)

Sindicalista e maior defensor na luta por melhores condições de trabalho para seringueiros, Chico Mendes foi, ao longo de sua trajetória, alvo de ameaças de morte e chegou a contratar escolta policial para garantir sua segurança. Com respeito internacional e notoriedade na política, o sindicalista foi morto no quintal da casa onde morava, em Xapuri, em dezembro de 1988, com um tiro de escopeta disparado por Darci Alves, a mando do pai, Darly Alves da Silva, fazendeiros da região. 

Pai e filho foram condenados, em 1990, a 19 anos de detenção. Eles chegaram a fugir, em 1993, mas foram recapturados três anos depois. Em 1999, O fazendeiro Darly saiu da prisão para cumprir o restante da pena em prisão domiciliar, enquanto o filho Darci também saiu no mesmo ano para cumprir regime semiaberto.

Mendes foi o precursor de inúmeros movimentos existentes. Hoje, ele é quem dá nome ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão das unidades de conservação nacionais. A morte de Chico, com um tiro de escopeta no peito, marcou a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), principal órgão federal que combate crimes ambientais.

O seringueiro e sindicalista Chico Mendes (Reprodução/Arquivo Memorial Chico Mendes)

Vítima da insegurança na Amazônia, a missionária membro da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namurfoi, Dorothy Stang, foi assassinada em 2005, por intermediar conflitos agrários na região de Anapú, no Pará. Dorothy foi morta com sete tiros em uma estrada de terra, na cidade em que residia. Na época, o presidente Luiz Inácio Lula Silva (PT) enviou dois ministros, de Meio Ambiente e Direitos Humanos, para o local e interditou 8,2 milhões de hectares de terra pública, mas mesmo assim foram chamados de omissos. Isso porque Dorothy avisou, duas semanas antes de sua morte, que estava sendo ameaçada por fazendeiros.

Os fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, e Regivaldo Galvão foram apontados como mandantes do crime pelo Ministério Público. Segundo o inquérito, Vitalmiro teria contratado o pistoleiro Amair Feijoli da Cunha para planejar a morte da Irmã Dorothy. Ambos foram condenados a 30 anos de prisão.

Religiosa norte-americana e ativista na região do Xingu, em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, que foi assassinada em 2005, no Pará (Imapress/AE/Reuters)

Amair Feijoli da Cunha pegou 18 anos de cadeia por contratar os pistoleiros Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista. Ele cumpre pena em regime domiciliar, desde maio de 2010. Clodoaldo Batista foi condenado a 18 anos de prisão e está solto desde julho de 2012. Já o pistoleiro Rayfran foi condenado a 27 anos de prisão, cumpriu aproximadamente nove anos e teve direito à progressão de regime domiciliar, mas voltou à cadeia em 2014 por envolvimento em outro assassinato.

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