Inconstitucional, PL que obriga leitura da Bíblia em escolas avança na Câmara de Manaus

Projeto busca incluir Bíblia como recurso paradidático (Foto: Freepik)
Yana Lima – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS – Mesmo com um parecer pela inconstitucionalidade, o Projeto de Lei que propõe a leitura da Bíblia nas escolas continua avançando na Câmara Municipal de Manaus (CMM). Os vereadores Raiff Matos (DC), Eduardo Alfaia (PMN), Prof. Samuel (PL), Raulzinho (PSDB) e Rosivaldo Cordovil (PSDB) assinam a autoria do PL e justificam que o objetivo é “difundir o conteúdo do livro mais importante da história da humanidade já escrito,” pontuando que a obra não teria apenas cunho religioso.

O projeto prevê o uso da Bíblia como um conteúdo paradidático. Essas obras são um material complementar ao conteúdo trabalhado em sala de aula, para que os alunos conheçam autores renomados e absorvam conhecimentos de diferentes áreas por meio da leitura.

A proposta passou pelas Comissões de Constituição, Justiça e Redação e de Finanças, Economia e Orçamento, nas quais não enfrentou resistências. Atualmente, a matéria encontra-se na Comissão de Educação, aguardando análise e emissão de parecer. Após essa etapa, o texto seguirá para votação no plenário.

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Inconstitucional

O projeto foi protocolizado no último mês de abril. Em junho, a Procuradoria-Geral da Casa emitiu um parecer preliminar pela inconstitucionalidade do projeto. O documento destacou que a Constituição Federal assegura a liberdade de consciência e crença, e o livre exercício dos cultos religiosos. No entanto, o documento ressalta que o Brasil é um Estado laico, ou seja, deve manter uma posição neutra no campo religioso.

A Procuradoria também argumentou que promover a leitura da Bíblia, símbolo de uma religião específica, em detrimento de outras vai contra o princípio da laicidade estatal, da liberdade religiosa e da igualdade entre os cidadãos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) corrobora esse entendimento. A Corte julgou inconstitucional uma norma semelhante no Estado do Amazonas em 2021. Uma lei amazonense obrigava escolas e bibliotecas a contarem com pelo menos um exemplar da Bíblia em seus acervos.

‘Estado perseguidor’

Ao chegar na Comissão de Constituição e Justiça, o entendimento foi diferente. Conforme parecer assinado pelo vereador João Carlos (Republicanos), que também é presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e dos Valores Cristãos (Fepacri), “a Câmara Municipal de Manaus não pode enveredar pelo entendimento raso e tacanho acerca do princípio da laicidade”. O relatório afirma, ainda, que “Estado laico não pode confundir-se com estado perseguidor”.

Trecho do parecer da CCJ na Câmara Municipal

“Proibir um docente, em sala de aula, de se utilizar de um material paradidático, com a anuência dos alunos que desejaram participar, não é uma medida razoável. Trata-se, apenas, de uma interpretação errônea da Constituição Federal de 1988. Diante da análise minuciosa do projeto em questão, manifesto-me FAVORAVELMENTE ao Projeto de Lei N. 216/2023”, diz trecho do parecer.

Bancada evangélica

Além do presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e Valores Cristãos (Fepacri), dos 41 vereadores de Manaus, 18, ou seja, quase metade estão alinhados à pauta cristã evangélica. Entre eles, está o vereador Raiff Matos (DC), artista do segmento gospel. Além do PL em questão, ele também fez outras proposições legislativas relacionadas à Bíblia na Câmara Municipal de Manaus.

Vereador e cantor gospel, Raiff Matos (Divulgação)

A Indicação Parlamentar 333/2022 propôs a implantação do programa “Estudando com a Bíblia” em uma escola modelo da rede pública de ensino municipal.

Também foram feitas indicações para a construção de um Memorial à Bíblia na Praça da Saudade e a criação de um Museu da Bíblia em Manaus, com o objetivo de promover a Bíblia como uma fonte cultural e histórica. Além disso, projetos anteriores, como o PL 48/2020, propuseram a edificação de monumentos em homenagem à Bíblia Sagrada na sede do município, e o PL 231/2018 instituiu a “Semana Municipal da Valorização da Bíblia” no município de Manaus.

Pastores e líderes evangélicos recebem homenagem na Câmara Municipal de Manaus (Foto: Divulgação/CMM)
Escola x religião

A relação entre a escola pública e a religião em um Estado laico é um tema que quase sempre suscita debates. Uma tese de mestrado em Educação, realizada por Renata de Andrade Brito na Universidade Federal Fluminense e publicada no Observatório da Laicidade na Educação, investigou as contradições e tensões entre laicidade e Ensino Religioso na escola pública.

Aula de Ensino Religioso em Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro (Foto: Zô Guimarães/Projeto Colabora)

O estudo sugere que a presença da leitura da Bíblia e ensino religioso nas escolas públicas é desnecessária e pode ser retirada dos currículos escolares, apoiando a concepção laica na educação.

“É importante ressaltar que em uma escola que busca o diálogo e a formação, a permanência do Ensino Religioso, carregado de dogmas e preconceitos, fere o princípio da laicidade e da democracia”, destaca.

Segundo ela, foi constatado que a religiosidade, principalmente derivada de religiões cristãs, é transmitida e naturalizada na escola. “A laicidade, que envolve a separação entre Estado e religiões, é um campo delicado no Brasil e muitas vezes envolve disputas políticas entre instituições religiosas e o Estado”, destaca.

Arte: Fernando Alvarus/Projeto Colabora

No Brasil, a laicidade ganhou força com a Constituição de 1891, que confirmou a separação entre o Estado e a Igreja Católica. No entanto, houve retrocessos com o retorno do ensino religioso nas escolas públicas.

Arte: Fernando Alvarus/Projeto Colabora

Segundo a pesquisadora, com a Independência do Brasil, o caráter religioso continuou influenciando a educação. O regime de padroado facilitava a influência da Igreja Católica sobre o Estado, impactando o campo educacional.

Arte: Fernando Alvarus/Projeto Colabora

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