Instituto afirma que 10% da população de botos foram perdidas em uma semana

Botos encontrados em área de rios onde antes não existia nenhum exemplar da espécie (Adriano Gambarini/WWF-Brasil)
Da Revista Cenarium Amazônia*

MANAUS – Em menos de uma semana, o Lago Tefé, no interior do Estado do Amazonas, sofreu uma perda de 10% de sua população de botos. Dos 155 registros de carcaças, 84,5% pertencem à espécie cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e 15,5% são tucuxis (Sotalia fluviatilis), que são geralmente os mais vulneráveis. A razão por trás dessa perda massiva de espécies ainda está sendo investigada por especialistas, incluindo a oceanógrafa Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).

Menos de 200 quilômetros separam os lagos Tefé e Coari. Esses dois corpos d’água que desembocam no Solimões, um dos rios que mais tem sofrido com a seca que se alastrou pela Amazônia nos últimos meses, são tão parecidos que é possível confundi-los.

“A única diferença é que o Coari tem um canal muito mais curto até chegar ao Médio Solimões”, destaca a oceanógrafa Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM). 

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Pesquisadores analisam botos no Lago Tefé. (Miguel Monteiro)

As semelhanças são tantas que o drama vivido no primeiro se repetiu, porém em menor escala, no segundo. “Desde 23 de setembro, registramos 155 carcaças de botos-cor-de-rosa e tucuxis no Lago Tefé e 23 no do município vizinho. Mas tenho certeza de que houve mortes em outros lugares porque existem mais de 50 lagos na região”, alerta a pesquisadora. “É a primeira vez no mundo que o calor, a crise climática, mata mamíferos aquáticos dessa maneira. O que está acontecendo na Amazônia é equivalente ao que está ocorrendo no Ártico com morsas e ursos polares.”

Se no Ártico os animais estão morrendo por conta do derretimento de geleiras, na Amazônia uma das consequências mais sérias das mudanças climáticas para a fauna aquática é o aumento da temperatura dos corpos hídricos, que em 2023 foi agravado pelo Oceano Atlântico Tropical Norte muito aquecido e um fenômeno de El Niño, gerando uma estiagem sem precedentes no bioma. Dos 62 municípios do Amazonas, por exemplo, 60 estão em estado de emergência, segundo a Defesa Civil. Mais de 600 mil pessoas foram prejudicadas.

“Secas e cheias extremas vão acontecer com cada vez mais frequência e intensidade. E a tendência é que a situação na região amazônica piore, pois a expectativa é de que no ano que vem o El Niño seja ainda mais forte”, salienta Miriam. “Botos são perfeitamente adaptáveis ao movimento das águas na cheia, eles se deslocam com uma flexibilidade tremenda na floresta alagada para se alimentar. Mas para a seca eles não estão adaptados. Reverter esse cenário não depende de nós, pesquisadores, depende de toda a humanidade se mobilizar”.

Miriam pontua, no entanto, que o sistema respiratório dos botos-cor-de-rosa é mais frágil. “Venho fazendo este trabalho desde 1993 e nas atividades de campo presenciei muitos com ruídos ao respirar. Análises histológicas e ultrassonográficas também comprovaram muitos casos de pneumonia e parasitos nos pulmões”, relata. “Então, outros fatores relacionados ao clima podem ter pesado no contexto atual. Em 28 de setembro, dia em que a temperatura da água chegou a quase 40°C na Enseada do Papucu e que documentamos 70 mortes, a qualidade do ar estava péssima devido às queimadas intensas e a umidade estava em 50%, quando neste período do ano costuma variar entre 80% e 90%”.

Estresse térmico
 

Ayan Fleischmann, líder do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia do IDSM, acrescenta que a hipótese mais provável é que, em decorrência do estresse térmico, os animais pararam de se alimentar e, por isso, perderam a capacidade de regular a temperatura corporal. “Em situações assim, a pressão sanguínea sobe e pode haver um colapso cerebral, como congestão ou derrame. Mas ainda estamos aguardando as análises de histopatologia para bater o martelo”, diz. 

Isso explicaria o fato de indivíduos, principalmente da espécie cor-de-rosa  (também conhecidos como botos vermelhos), terem sido vistos desorientados no Lago Tefé, fazendo movimentos circulares, como se não soubessem para onde ir momentos antes de perderem a vida. “Se o aumento da pressão sanguínea for confirmado nos exames, teremos descoberto da pior forma possível o limite de temperatura que os botos suportam. Por isso, os próximos anos nos apavoram”, completa o pesquisador.

Após seguidas aferições de temperatura em diferentes horários, profundidades e locais, o IDSM concluiu que a Enseada do Papucu, um dos pontos preferidos dos botos da região pela abundância de peixes, drena água de uma área bem rasa do Lago Tefé, uma vasta lâmina que está medindo apenas entre 20 e 30 centímetros de altura e que tem potencial para esquentar muito sob o sol escaldante. 

Um verdadeiro caldeirão que ultrapassou os 40°C em 28 de setembro, o dia mais mortal para os animais, quando a temperatura da água bateu 39,1°C na Enseada. “Acima do Papucu medimos quase 41°C, mas a temperatura foi baixando em seu curso até chegar a 33°C ou 32°C no Rio Solimões. Vimos que o fluxo da água foi dissipando o calor”, diz Fleischmann.

A partir do drama que se iniciou em Tefé, o IDSM criou uma rede de parceiros para monitorar outros lagos na Amazônia e já conta com pesquisadores em municípios como Manaus e Iranduba, no Amazonas, e Santarém, no Pará. Em Coari, por exemplo, a equipe da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), liderada pela professora Waleska Gravena, tem monitorado o lago três vezes por semana. Além disso, estão sendo instalados sensores automáticos para aferir a temperatura da água e amostras foram coletadas para análise físico-química em laboratório. 

“Assim como a temperatura do ar bate recordes, a hipótese é que agora a temperatura da água também tenha batido. Das medições que temos disponíveis, nunca havíamos chegado ao patamar atual na Amazônia”, comenta Fleischmann. 

Sem agentes infecciosos
 

Dentre os resultados documentados até o momento estão 124 animais necropsiados e amostras de tecidos e órgãos enviadas para laboratórios especializados distribuídos pelo Brasil. Dezessete foram avaliados com análises histológicas e não há indícios de agentes infecciosos relacionados como causa primária da mortalidade. Os diagnósticos moleculares de 18 indivíduos também deram negativo para os agentes infecciosos Morbillivirus, Toxoplasma, Clostridium, Mycobacterium e Pan-fúngico, associados a mortes em massa de cetáceos.

O que o WWF-Brasil está fazendo

O WWF-Brasil tem agido em parceria com o IDSM fornecendo combustível, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), insumos veterinários e apoio logístico para o deslocamento de voluntários. Também está em contato com parceiros locais e mobilizado para apoiá-los no enfrentamento da crise humanitária causada pela seca na região amazônica, pois as consequências são especialmente dramáticas para as populações mais vulneráveis, como indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos. Neste momento, nossa principal frente de atuação é no fornecimento de alimentos para comunidades impactadas pelo desabastecimento.

“Na Amazônia, estamos vivendo uma seca histórica, com incêndios florestais e altas temperaturas, causada pelo aumento do desmatamento e intensificada pelo El Niño. As consequências dessa seca são graves para as populações locais e para a biodiversidade, tanto que já registramos a morte de 178 botos na região”, afirma Mariana Paschoalini Frias, analista de Conservação do WWF-Brasil e coordenadora do SARDI (Iniciativa Sul-Americana dos Golfinhos Fluviais).

“Essa tragédia mostra a urgência da adoção de medidas conjuntas para a conservação da Amazônia, um bioma chave para a dinâmica climática em todo o mundo, e dos botos, espécies fundamentais para o equilíbrio ecológico e que permitem avaliar o estado de saúde dos ecossistemas em que habitam”.

*Com informações do WWF-Brasil, de Tefé (AM)
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