Jornalista discute passado escravista de Portugal e relação familiar com o tema em documentário

Ciente de que há inúmeros casos similares ao seu, a jornalista decidiu expor a história de sua própria família como forma de chamar a atenção para os efeitos que o passado colonial ainda provoca na sociedade lusa (Reprodução/Redes Sociais)
Da Revista Cenarium*

LISBOA – Ao pesquisar a vida de seus antepassados, a jornalista portuguesa Catarina Demony deparou-se com o segredo mais bem guardado de sua família: a participação direta de pelo menos cinco gerações no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Ao longo de mais de um século, seus familiares fizeram fortuna com a comercialização de seres humanos, principalmente, na rota entre Angola e Brasil.

Descendente dos poderosos Matoso de Andrade e Câmara, listados por diversos historiadores entre os maiores traficantes de pessoas escravizadas, Catarina descobriu que o local onde hoje funciona o Museu da Escravatura, em Luanda, pertenceu à sua família — um passado que costuma ser ocultado da biografia de seus parentes, em que são mencionados apenas pelos cargos políticos e militares que exerceram.

Ciente de que há inúmeros casos similares ao seu, a jornalista decidiu expor a história de sua própria família como forma de chamar a atenção para os efeitos que o passado colonial ainda provoca na sociedade lusa. “Há uma relação direta entre a escravatura e o passado colonial com o racismo que acontece em Portugal hoje. O documentário tenta mostrar também isso”, diz Catarina.

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Catarina Demony faz entrevista para o documentário ‘Debaixo do Tapete’ (Carlos Costa/Divulgação)

Lançado em Lisboa no fim de março, “Debaixo do Tapete” usa a história familiar como um ponto de partida para discussões mais amplas, como racismo, violência policial e o crescimento da ultradireita em Portugal. “A história dos meus antepassados é também a história de muitos portugueses. Uma pessoa como eu, descendente de comerciantes de pessoas escravizadas, teve benefícios da escravatura. Não é que o dinheiro que esteja na minha conta bancária seja o dinheiro dos meus antepassados, mas o passado do tráfico abriu portas para mim e para várias gerações da minha família”.

A decisão de expor o passado escravocrata dividiu os parentes da jornalista. Enquanto parte da família se opôs à decisão de falar em público sobre o tema, outros se dispuseram a colaborar com a produção.

Com 100 anos, Maria Clementina, bisavó de Catarina, é uma das entrevistadas. Ela ajuda a contar o passado de privilégios da família em Angola. Já a avó da jornalista, Lurdes Abreu, emociona-se no documentário ao imaginar a dor provocada por seus antepassados.

O filme também entrevista especialistas que ajudam a dimensionar a importância econômica e social da escravidão. “Praticamente, todo brasileiro e todo português que ia para Angola acabava se envolvendo no tráfico”, diz a historiadora Vanessa Oliveira.

A produção defende a tese de que, apesar do papel central de Portugal no comércio de pessoas escravizadas, o País ainda discute pouco o tema. Pesquisas com livros didáticos lusos, por exemplo, indicam que a colonização aparece retratada quase sempre de forma positiva. Inquéritos internacionais mostram também a persistência de ideais discriminatórios. A última edição do European Social Survey, divulgada em 2020, revela que 62% dos portugueses manifestam alguma forma de racismo.

Catarina Demony durante as filmagens para o documentário ‘Debaixo do Tapete’ (Carlos Costa/Divulgação)

O documentário relembra alguns episódios de violência, com destaque para o assassinato do ator português Bruno Candé. O artista, um homem negro, foi morto com quatro tiros à queima-roupa em 2020.

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O autor dos disparos era um vizinho com histórico de ofensas racistas. Ex-combatente da guerra colonial, o assassino, segundo testemunhas, teria gritado “preto, vai para a tua terra”, antes de puxar o gatilho. A população racializada – cuja real dimensão é desconhecida, uma vez que o censo luso não inclui questões sobre raça ou etnia – também aparece como alvo preferencial da violência policial.

“Debaixo do Tapete” explora ainda o crescimento da ultradireita e do discurso discriminatório na política, passando pela perseguição de ativistas que se dedicam a combater a discriminação racial. Dirigente da ONG SOS Racismo, o luso-senegalês Mamadou Ba é um dos alvos preferenciais. Além das frequentes ameaças, uma petição on-line, que pede sua expulsão de Portugal, já reúne mais de 30 mil assinaturas.

Brasileiros que estudaram o tráfico de seres humanos foram entrevistados, entre os quais, Laurentino Gomes, autor da trilogia “Escravidão”. A presença de nomes do Brasil não é aleatória, diz a ativista portuguesa Paula Cardoso, criadora da plataforma Afrolink. “Há historiadores portugueses que trabalham essas questões, mas muitos estão fora de Portugal, pois não conseguiram fazer esse trabalho aqui”.

Desde que as primeiras informações sobre o documentário se tornaram públicas, a própria idealizadora do filme passou a receber ofensas e ameaças. “Não é uma questão sobre eu ter direito ou não de falar sobre esse passado. Eu tenho um dever e uma obrigação de falar sobre esse tema”, diz Catarina.

Dirigido por Carlos Costa, “Debaixo do Tapete” ainda não tem data de estreia no Brasil, mas começa, agora, a integrar o circuito internacional de festivais e documentários.

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(*) Com informações da Folhapress
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