Jurados confirmam apropriação cultural de sinhazinha em Festival de Parintins

Sinhazinha do Boi-Bumbá Caprichoso encena incorporação da orixá Oxum (Jordy Neves/Reprodução)
Adrisa De Góes – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – A figura da orixá Oxum – entidade religiosa de matriz africana, representada pela sinhazinha da fazenda do Boi-Bumbá Caprichoso – personagem que simboliza o colonialismo, na segunda noite do 56° Festival Folclórico de Parintins, realizada no último dia 1°, foi considerada uma apropriação cultural. É como justificaram os jurados em avaliação ao item, no caderno de votação que se tornou público nesta quinta-feira, 6.

A confirmação vem após a REVISTA CENARIUM publicar a análise da jornalista, advogada especialista em africanidades e ativista do movimento negro, Luciana Santos, na terça-feira, 4. Luciana já havia adiantado que a encenação da filha do dono da fazenda, caracterizada como orixá, apontava para o apoderamento afrocultural e epistemicídio – quando há a morte da construção do conhecimento, ou seja, quando uma cultura se sobrepõe à outra.

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A sinhazinha da fazenda do Boi Caprichoso durante encenação da orixá Oxum (Jordy Neves/Reprodução)

A observação de Luciana Santos se assemelha à justificativa da nota 9,5 atribuída ao item pelo jurado Marco Aurélio da Cruz Souza, doutor e mestre em Dança pela Universidade de Lisboa, em Portugal. O avaliador disse ter estranhado o contexto apresentado pelo bumbá, o que causou, para ele, “impressão negativa de apropriação cultural”.

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“A relação da personagem sinhazinha com Oxum causou grande estranhamento, apesar de visualmente lindo. O estranhamento se deu por não apresentar nenhuma aproximação com a cultura local do quadro. Deu a impressão negativa de apropriação cultural”, justificou o avaliador.

O jurado continua: “Ao pisar no chão, isto é, reforçado, deixa de lado o figurino e troca para o traje de sinhá, reforçando o lugar de personagem. Entretanto, o corpo de baile se manteve no papel de pessoas escravizadas ou de religião afrodispórica. Foi chocante”, escreveu.

Trecho da justificativa da nota 9,5 atribuída pelo jurado Marco Aurélio da Cruz Souza ao item sinhazinha da fazenda do Boi Caprichoso (Reprodução)
Contexto similar ao de pessoas escravizadas

Outro jurado, Luiz Antônio Pilar, que é bacharel em Artes Cênicas e diretor de programas da TV Globo, afirma que a nota 9,8 aplicada por ele ao item também se justifica na apropriação cultural. O crítico citou, ainda, o grupo de dançarinos que participaram da encenação caracterizados com roupas similares às usadas por pessoas escravizadas.

“Pela definição do item no regulamento do festival, considerei uma apropriação cultural apresentar a personagem, inicialmente, como Oxum e, na sequência, representar o grupo de guardiãs e guardiões como escravizados”, disse Luiz Antônio Pilar.

No regulamento do Festival de Parintins, a sinhazinha é a filha do dono da fazenda. No contexto folclórico, ela representa uma figura inserida na família dos antigos colonizadores.

Trecho da justificativa da nota 9,8 atribuída pelo jurado Luiz Antônio Pilar ao item sinhazinha da fazenda do Boi Caprichoso (Reprodução)
Oxum em contextualização deturpada

Para o Xɛ́byosɔnɔ̀ (sacerdote de Vòdún Xɛ́byosɔ) Alberto Jorge, Oxum foi apresentada fora do contexto quando realizada a metamorfose da orixá para o item de características europeias. Durante a apresentação, no último dia 1°, a sinhazinha da fazenda inicia a encenação vestida como a divindade e, depois de gestos de desincorporação, se transforma em sinhá.

Na visão do Xɛ́byosɔnɔ̀, a imagem repassada é de que Oxum privilegia a personagem folclórica e permite que esta se sobressaia, como se fosse gerada pela orixá. Para ele, também há um distanciamento significativo da comparação entre as indumentárias nos dois momentos. Enquanto uma parece ser mais simples, a outra de sinhá esbanja luxuosidade.

O Xɛ́byosɔnɔ̀ Alberto Jorge (Reprodução/Internet)

“Toda a nossa história de resistência mostra que Oxum sempre esteve junto com os seus filhos, que não os desamparou. Os relatos que se têm do período da senzala é que oxum sempre estava junto conosco, aliviando nossas dores, trazendo soluções. Ela não se manifestava no senhor que nos escravizava, pelo contrário, ela se manifestava nos escravizados, e o boi-bumbá peca em trazer a divindade se metamorfoseando numa sinhazinha de escravizados”, explica à CENARIUM.

Empobrecimento de vestimentas

Durante a apresentação, a sinhazinha evolui com dançarinos que participam da encenação com roupas características do povo do axé. Alberto Jorge observa a reprodução parecida à maneira “como viviam os irmãos escravizados”.

“Oxum dá a vez para uma sinhazinha numa posição de escravizadora, porque a roupa que ela está usando é uma roupa de sinhá. O povo que está no entorno continua com a mesma roupa simples e humilde da senzala. A imagem que está sendo passada é que Oxum privilegiou aquela sinhazinha, se metamorfoseou nela, mas não fez essa mesma metamorfose para os seus filhos que rendiam homenagem no entorno”, disse Alberto à reportagem.

O Xɛ́byosɔnɔ̀ afirmou ainda que, ao contrário do que foi mostrado na arena do Bumbódromo de Parintins, nas festas de candomblé, os participantes capricham nas vestimentas. “Quando um orixá sai na sala [do terreiro], todo o povo que está no entorno está com suas melhores vestes. É todo mundo bem vestido, fazendo homenagens à divindade. No caso do festival, nós temos uma cena de pessoas com roupas bastante simples”, pontua.

Erro gravíssimo

A saia que compunha o vestido de sinhazinha, em sua forma de orixá, tem a figura de um peixe e dá a impressão de que Oxum é metade peixe e metade mulher. Para Alberto Jorge, esta é uma visão errônea sobre a personificação da divindade. Além disso, ela é considerada a rainha das águas doces.

“Há alguns que insistem que Oxum tem uma parte que é peixe. Mas o Ìtàn (mito) de Oxum fala que ela se banha nas águas, que é a dona do rio Ọṣun. Mas peixe não se banha nas águas, ele vive nas águas. Oxum é a senhora das águas doces, ela é uma Yabá, mas ela não é peixe, ela é uma mulher plena. Que os bois continuem valorizando a cultura afro-amazônica, mas que estudem profundo a contextualidade antes de usarem os nossos elementos”, afirmou.

Ataques à analista da CENARIUM

A analista da CENARIUM Luciana Santos, que expôs a problemática da relação entre a orixá Oxum e a sinhazinha da fazenda do Boi Caprichoso teve o mesmo entendimento do júri técnico do festival, porém, sofreu ataques nas redes sociais após assinar a autoria do conteúdo. Ela afirma que, ainda assim, ficou feliz com a proporção que o debate tomou.

“Os jurados conseguiram perceber a apropriação cultural que foi feita com essa divindade africana e o lugar de subalternização em que os demais participantes negros foram colocados. O diferencial é que no artigo trago o ponto de vista de uma mulher preta, amazônica, pesquisadora de temas que envolvem relações étnico-raciais e que vivencia o racismo no seu dia a dia”, disse.

A jornalista, advogada, ativista do movimento negro e analista da CENARIUM Luciana Santos (Reprodução/Revista Cenarium)

A especialista continua: “Além disso, brindo os leitores com trechos de trabalhos de autores essenciais para o entendimento do racismo e da intersecção entre raça, gênero e raça, o que pode servir para aqueles que desejam construir um letramento racial e contribuir para a luta antirracista. Fico feliz com a dimensão que o assunto ganhou, apesar dos ataques que recebi“.

A jornalista e advogada ressalta também que diminuir o conhecimento de pessoas pretas é uma violência que ocorre, inclusive, na academia, ainda majoritariamente branca. “Tomando como base o pacto da branquitude que impera no País, certamente o tratamento seria outro se fosse um homem branco escrevendo”, finalizou.

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