Lei de Boa Vista que exclui trans em competições esportivas é inconstitucional, diz MPF

Atleta de corrida (Reprodução/Freepik)
Da Revista Cenarium*

BOA VISTA (RR) – A Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), defende a inconstitucionalidade de uma lei do município de Boa Vista, em Roraima, que estabelece o sexo biológico como único critério para definição de gênero nas competições esportivas oficiais. A Lei 2445/2023 também prevê a desclassificação e multa às entidades que descumprirem esse critério, a anulação de prêmio das equipes que tenham atletas transgênero entre os integrantes e o banimento de atletas que se inscreverem nas competições omitindo a condição de pessoa trans.

A PFDC afirma que a norma extrapola a competência concedida pela Constituição Federal aos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar normas estaduais e federais. Isso porque a lei municipal desconsiderou a existência das Leis federais 9.615/1998 – conhecida como Lei Pelé – e 14.597/2023, que instituiu a Lei Geral do Esporte. Ambos os dispositivos definem que os princípios fundamentais do esporte estão baseados na democratização, inclusão, e liberdade, e que todas as pessoas têm direito à prática esportiva em suas diferentes manifestações.

“A norma atacada não só afronta os preceitos da própria legislação nacional de regência, por adotar critério transfóbico, excludente e estigmatizante nas competições esportivas em âmbito municipal, como também ultrapassa mero assunto de interesse local, uma vez que a efetiva garantia ao direito à identidade de gênero é tema de interesse de toda a população brasileira, em especial da população trans”, argumentam o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena, e o coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+, Lucas Costa Almeida Dias.

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Bandeira da visibilidade trans (Reprodução/Freepik)

Além disso, a lei municipal representa uma intromissão estatal nas questões de administração interna do desporto, prática não permitida pela Constituição Federal. Segundo a PFDC, não cabe ao Poder Legislativo, em qualquer nível, estabelecer regras para a participação de atletas em competições, mas sim às entidades desportivas, em conformidade com as diretrizes do Comitê Olímpico Internacional (COI). Os princípios norteadores do COI, que regulamentam a participação de atletas transgênero e permitem a participação deles nas Olimpíadas desde 2004, também não foram respeitados pela norma municipal.

Discriminação

O órgão do MPF aponta o atraso do Brasil em relação ao reconhecimento dos direitos das pessoas transgênero. Na contramão do que determinou a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019, por exemplo, o país segue sem atualizar o Código Internacional de Doenças (CID) para retirar do catálogo de patologias o chamado transtorno de identidade sexual ou de identidade de gênero. “A identidade de gênero e a orientação sexual de uma pessoa definem e moldam muitos aspectos de suas vidas. A população LGBTQIA+ continua a experimentar estigmas danosos e enfrenta vários encargos pessoais e sociais que demandam apoio governamental direcionado”, registra o documento.

A PFDC destaca que as estatísticas “não deixam dúvidas quanto à severa precariedade existencial das pessoas trans no Brasil”. Segundo relatório desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é o país que mais mata travestis, mulheres e homens transexuais no mundo há 14 anos consecutivos. A exclusão de pessoas trans de competições esportivas, na avaliação do órgão, afronta a existência de todo esse segmento da população, invisibilizando um grupo já marginalizado e promovendo seu adoecimento psíquico.

A representação foi encaminhada para análise ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, a quem cabe atuar perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

Leia mais: Professora trans de instituto federal tem demissão revertida pela CGU
(*) Com informações do MPF
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