Líder indígena classifica como ‘massacre’ PEC que dá poder de demarcar terras indígenas ao Senado

O cacique Kretã Kaingang (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Mayara Subtil – Da Revista Cenarium Amazônia

BRASÍLIA (DF) e BELÉM (PA) – A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) N° 59, de 2023, está em curso no Senado para tornar competência da Casa Legislativa a demarcação das terras indígenas. A PEC foi entregue nesta semana, em meio à tensão em torno do veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o Marco Temporal. À REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, o cacique Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Região Sul, declarou nesta sexta-feira, 10, que a manobra dos parlamentares repete o massacre contra o povo Laklãnõ-Xokleng, quase dizimado por pistoleiros em abril de 1904.

Esse massacre já existe. [Os congressistas] só querem consumar dentro da lei. Precisam, de alguma maneira, dessa emenda para dizer que está na Constituição Federal. Esse massacre já acontece com os parentes Yanomami, por exemplo, gerando morte entre lideranças indígenas. Este momento é um dos mais difíceis que estamos passando. Negam os nossos direitos, trabalharam a miscegenação“, disse.

Há quase 100 anos, dez homens armados avançaram sobre um acampamento do povo Xokleng, próximo de Aquidaban, hoje, município de Apiúna, em Santa Catarina. Os indígenas ainda acordavam quando os invasores passaram a atirar contra eles sem pausa. Todos morreram.

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Laklãnõ-Xokleng: bugreiros com mulheres e crianças presas após matança de indígenas (Reprodução/Acervo Silvio Coelho dos Santos).

Os descendentes dos Laklãnõ-Xokleng, cujos sobreviventes acabaram expulsos de suas terras, foram pivôs de um julgamento de relevância nacional que terminou em vitória aos povos indígenas. Após dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu se a terra indígena Ibirama-LaKlãnõ, onde moram os Xokleng, os Kaingang e os Guarani, deveria incorporar uma área reconhecida pelo Executivo como parte da reserva, o que foi reivindicado pelo governo catarinense.

A ação se baseava na tese do marco temporal para alegar que os indígenas não têm direito à área em disputa porque não estavam ali em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. O artigo 231 da Carta Magna, por sua vez, garante a esses povos o direito sobre suas áreas tradicionais.

Se a tese fosse reconhecida pelos magistrados, valeria para todos os processos de demarcação em andamento e início na Justiça. Em paralelo, o Congresso avançou em discussões sobre a pauta e aprovou um projeto de lei sobre o tema.

Laklãnõ-Xokleng: indígenas entre colonos alemães (Reprodução/Acervo Edmar Hoerhan).

A maioria dos parlamentares, hoje, que são contra a pauta indígena, são descendentes desses europeus oriundos da Segunda Guerra Mundial que vieram para o Sul. Esses que governam, hoje, o Congresso Nacional. O agronegócio domina o Congresso Nacional. Foram caçadores do nosso povo. Tudo o que puderam fazer com os nossos povos fizeram. Agora, chegaram na Amazônia, pois a briga principal é a questão da demarcação“, complementou Kaingang, que é filho de Angelo Kretã, responsável por liderar a retomada das terras indígenas no Sul e morto em 1980.

Conforme a PEC protocolada no Senado, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos ‘índios’ são de domínio da União, trata-se de procedimento administrativo da União identificar essas terras e demarcá-las no interesse das comunidades indígenas que ocupam de modo tradicional essas áreas“.

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No fim e ao cabo, a demarcação das terras indígenas consubstancia-se em verdadeira intervenção em território estadual, com a diferença fundamental de que, neste caso, e ao contrário da intervenção prevista no inciso IV do art. 49, nenhum mecanismo há para controlá-la, ou seja, a falta de critérios estabelecidos em lei torna a demarcação unilateral“, cita ainda o texto. No total, 27 senadores assinaram a proposta. Oito são da Amazônia Legal.

São eles:

Jaime Bagattoli (PL-RO)
Zequinha Marinho (Podemos-PA)
Plínio Valério (PSDB-AM)
Mecias de Jesus (REPUBLICANOS-RR)
Lucas Barreto (PSD-AP)
Alan Rick (União-AC)
Jayme Campos (União-MT)
Dr. Hiran (PP/RR)

Demarcação dos territórios

As demarcações de terras indígenas têm por objetivo garantir o direito indígena àquela área. Estabelece a real extensão da posse ao povo originário e assegura a proteção dos limites demarcados, impedindo a ocupação ou exploração por não indígenas — como fazendeiros ou garimpeiros, por exemplo.
Esse reconhecimento formal veio com a aprovação do Estatuto do Índio, de 1973.

Hoje, a demarcação é feita a partir de um antropólogo nomeado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável por elaborar um estudo técnico especializado para demarcar a área. Ao fim de todas as etapas do processo burocrático, as demarcações precisam ser submetidas ao presidente da República para homologação via decreto.

Em 2023, o presidente Lula (PT) assinou a homologação para a demarcação de oito terras indígenas. No início do ano, a atual gestão federal informou que ia dar prioridade à homologação de uma lista de 14 territórios indígenas, já que se acirrou a tensão nesses locais.

Indígenas pedem por demarcação dos territórios (Reprodução)

Conforme o Poder Executivo, desde 2018, ainda na gestão de Michel Temer, que não são feitas demarcações no Brasil. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) destacava em discursos que não demarcou terras indígenas.

Para Kretã Kaingang, é necessário que o Executivo acelere os processos. “[O governo federal] não tem força para barrar os projetos de lei, mas garante a homologação da demarcação das terras. Tem terra que não está em lugar nenhum, mas há famílias que querem a demarcação. O território já era nosso, sempre foi nosso. Cada terra que você não demarca, impacta diretamente nas mudanças climáticas“, disse.

Marco Temporal no Congresso

Em outubro, Lula vetou trechos do projeto de lei que fixa a tese na legislação para demarcação de terras indígenas. O debate retornou ao Congresso, que deverá avaliar os vetos presidenciais ainda neste mês. O veto é o instrumento que o presidente da República tem para manifestar a sua discordância com projetos aprovados pelo Congresso. O mecanismo permite que o chefe do Executivo exclua trechos ou mesmo rejeite a íntegra da matéria. Mas os congressistas têm o direito de derrubá-lo.

Manifestação de indígenas contra o Marco Temporal na Esplanada dos Ministérios (Antônio Cruz/Agência Brasil)

A bancada ruralista vem alegando que a decisão do STF, bem como os vetos presidenciais, são uma “afronta à soberania” do Congresso. Apesar disso, o Executivo tem papel constitucional de legislar ou vetar propostas, enquanto que do Judiciário é de resguardar a Constituição Federal.

Conforme levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), divulgado nesta semana pelo Observatório do Clima e a Apib, se os vetos de Lula sobre o Projeto de Lei 2.903 forem derrubados, há risco de expor uma área de 55 milhões de hectares de florestas em terras indígenas na Amazônia ao desmatamento. “As terras indígenas cairão num limbo que resultará em aumento da pressão por invasão ilegal de grileiros, atualmente, já em curso, e numa avalanche de desmatamento“, cita o estudo.

Leia mais: Congresso Nacional adia análise do veto de Lula sobre Marco Temporal
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Adriana Gonzaga
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