‘Ministério da Amazônia deixou de ser especulação há muito tempo’, diz Marilene Corrêa, cotada para a pasta

A cientista Marilene Corrêa deu uma entrevista exclusiva para a Revista Cenarium (Thiago Alencar/CENARIUM)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – Neste domingo, 20, Dia da Consciência Negra, a REVISTA CENARIUM entrevistou um dos nomes mais cotados para assumir um possível “Ministério da Amazônia”. Pensadora amazônida, mulher negra e amazônica, Marilene Corrêa é um símbolo de superação humana, geográfica, social, econômica e o que mais as “escalas e réguas” do cartesiano sistema das desigualdades brasileiras podem impor a quem vem de baixo.

Pós-Doutora em Sociologia pela Université de Caen, Gustave Eiffel e Sorbonne, professora titular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), foi ex-presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), ex-secretária de Ciência e Tecnologia do Amazonas e ex-reitora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), Marilene foi convidada a ingressar na equipe de transição do Governo Lula. Em entrevista exclusiva, ela abordou sua participação na transição, contextos políticos nacionais e internacionais, ambientalismo e o futuro da Amazônia.

Leia a entrevista na íntegra:

REVISTA CENARIUM (RC) – Professora, qual a contribuição que a pensadora amazônida Marilene Corrêa pode dar a um grupo de construção de um novo governo para o Brasil, após a experiência do Governo Bolsonaro na Amazônia?

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Marilene Corrêa (MC) – Posso dar a compreensão equilibrada entre as necessidades de proteção do planeta, os interesses regionais, o pensamento nacional sob a ótica de quem conhece, há 40 anos, e compreende a relação desigual do Brasil com a Amazônia, mas, também, entende que a maior parte do pensamento brasileiro desconhece a geografia, a ecologia e as relações dos povos com seus territórios, suas culturas e o pensamento nacional. E aí que acredito que podemos dar uma enorme contribuição sobre a Amazônia profunda.

RC – Professora, em um exercício apurado de realidade, onde estão as urgências do próximo governo para a Região Amazônica?

MC – As urgências estão muito claras do ponto de vista da estratégia do que se pretende para os primeiros 100 dias do Governo Lula. Nossa meta é um diagnóstico até o final de dezembro, daquilo em que o Brasil foi mais prejudicado. Em especial, naquilo em que a Amazônia sofreu mais prejuízo ou retrocedeu. Temos problemas de todas as ordens. Da segurança pública dos territórios dos povos indígenas, da política de saúde indígena, da logística, financiamento do sistema produtivo da região e da adoção total ou parcial de programas de desenvolvimento sustentável. Fora a criação de um sistema de segurança geral em nossas fronteiras. Há inúmeros, centenas de problemas, na Amazônia, que exigem a intervenção do governo federal.

RC – Existe, ainda que no campo da especulação, a criação de um “Ministério da Amazônia”. Isso é real? A senhora considera essa possibilidade?

MC – A possibilidade de criação do Ministério da Amazônia já saiu do campo da especulação há muito tempo. É obvio que se debate, politicamente, a conveniência de uma vez que, se for criado o ministério para a Amazônia, voltaremos ao debate anterior de criação também de um ministério para o Nordeste ou para qualquer área onde a região seja prioritária. A questão é que a Amazônia está no centro do debate internacional. Não podemos esquecer que o Brasil tem mais de 60% da Amazônia como bioma, como ecossistema, ou seja, temos a maior parte do trópico úmido. Se o Brasil não fizer uma política especial para a Amazônia, será impossível darmos conta sozinhos dessa região. É melhor ter um ministério, mesmo que isso desagrade outras pastas. O fato é que já existe um pleito entregue nas mãos do presidente Lula. Quando será feito e qual vai ser a melhor oportunidade? Isso será uma decisão do presidente da República.

RC – Independente da possibilidade de um ministério para a região, a senhora entende que é preciso um olhar cirúrgico do Brasil para o Brasil, que o “Brasil desconhece”, nesse caso a Região Amazônica?

MC – O desconhecimento deve ser relativizado. Na verdade, a Amazônia está no imaginário e no coração do brasileiro como a dimensão mais natural do pertencimento da sociedade nacional. É o lugar da natureza, dos nossos rios, da nossa floresta, dos nossos bichos. É lugar do nosso imaginário lendário. É o lugar do nosso realismo fantástico, das culturas vivas que expressam isso. O que o Brasil desconhece da Amazônia? É a sua singularidade. É o fato de que a nossa fisiografia e as nossas culturas ancestrais exigem outro tipo de abordagem das políticas nacionais para a Amazônia brasileira. Estão, aí, os indígenas dando as coordenadas de como essas políticas deveriam ser. Estão aí, os ribeirinhos e quilombolas indicando quais seriam as suas prioridades. Estão aí, os governadores a reclamar outro pacto federativo. Está aí, o judiciário, os cientistas, a indicar que a Amazônia é específica e que merece um maior conhecimento do Brasil. O Brasil tem mais condições de conhecer a Amazônia. Coisa que os estrangeiros já conhecem.

RC – A Amazônia é inevitável para os próximos governos do Brasil, sejam eles de direita, centro ou esquerda. Seu papel como cientista amazônida e amazônica será qual, pelos próximos anos?

MC – Meu papel, como cientista, será de lutar para que o conhecimento que desenvolvemos em 100 anos de pesquisa, na Amazônia, consiga dialogar com outros centros de formação científica do Brasil. Conseguimos isso quando vemos nossos alunos formados, aqui, fazerem pós-doutorado no exterior. Serem aprovados em outras universidades como professores. Essa nossa inserção de oito amazonenses nos grupos temáticos da transição do presidente Lula só acontece porque temos formação acadêmica. Temos que mudar as elaborações de políticas nacionais para a Amazônia por pessoas que não são da Amazônia. Isso está acontecendo, agora, porque o presidente Lula tem clareza da importância da Amazônia para o mundo, porém, ele tem muito mais clareza que o futuro do Brasil depende do modo como o Brasil vai estar contido no seu território maior que é a Amazônia.

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