Profissões esquecidas: as horas incansáveis de trabalho dos artesãos de calçados, os sapateiros

Seu Raimundo trabalha desde os 14 anos com a sapataria (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS — Era um dia comum em meados da década de 1970, quando Raimundo Nazaré Assunção Miranda, com seus 14 anos, perdia o pai, com quem tinha recém-aprendido a trabalhar com o artesanato na arte de calçados, ou a sapataria, uma profissão repassada em sua família de geração para geração. Hoje, aos 65 anos, o sapateiro é chamado de Seu Raimundo, o paraense de Belém que veio para Manaus já adulto e que, há mais de 50 anos, atua na área, incansavelmente.

Um dos personagens desta história, Seu Raimundo estampa um breve sorriso no rosto, meio tímido, embaraçado, e apresenta olhos cansados que não escondem os desafios diários que precisou passar na vida para sustentar a família, por meio da labuta que escolhera ainda na adolescência, em meio à falta de oportunidade no mercado de trabalho. O homem de fortes expressões, sentado em uma cadeira de plástico e envolto por ferramentas, sapatos, tênis e sandálias, que chegam a todo instante, se orgulha em dizer que sabe o que faz e que todo serviço na oficina onde trabalha precisa passar pela avaliação técnica e olhar criterioso dele.

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Seu Raimundo trabalha desde os 14 anos com a sapataria. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

“Já trabalhei em duas lojas de carteira assinada, mas escolhi os sapatos. A gente tem que viver fazendo o que ama. A pessoa tem que se dedicar. Gostar mesmo para seguir a profissão, porque aqui a gente passa por poucas e boas e precisamos seguir em frente. Se pudesse dar uma dica para os mais novos, diria: ‘faça o que você ama’. Faça o que sabe. Aqui, nós trabalhamos com todo tipo de serviço de restauração, todo mesmo e fazemos bem feito. Mas tudo aqui precisa passar por mim, porque sou eu que faço. Olho o produto, informo o preço e o cliente fala com um dos meus dois rapazes que trabalham comigo”, disse Seu Raimundo, quando questionado sobre a profissão que escolheu.

O sapateiro conta à REVISTA CENARIUM que vive na capital amazonense há seis anos e que resolveu mudar de cidade em busca de melhores condições de trabalho. Segundo ele, a profissão é mais reconhecida em Manaus, além da cidade oferecer diferentes opções de compra de instrumentos para realizar os serviços. Na capital, Seu Raimundo mora no bairro Parque 10, na zona Centro-Sul, mas passa pouco mais de dez horas por dia na sua oficina, que fica numa região conhecida como “Hospital dos Calçados”, na Avenida Perimetral II, no bairro Parque 10.

À CENARIUM, Seu Raimundo falou do desafio de mudar de cidade para trabalhar. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

“Esse foi o meu maior desafio: mudar de cidade. Vim de uma ótima cidade, a minha raiz está lá. Aqui, a gente abre a oficina às 6h e fecha às 16h. O dia é corrido, não para. É serviço saindo e entrando, entrando e saindo. Já somos referência e as pessoas gostam da gente. Trabalhamos de segunda a sábado. A única folga é dia de domingo. Pausamos só para almoçar rápido, mas comemos aqui mesmo”, detalhou o sapateiro.

Casado, Raimundo Miranda tem três filhos e duas netas e, apesar de amar a profissão, afirma que não sonha em ver seus filhos trabalhando com a sapataria. “Eu quero que eles estudem para ser melhor que eu. Não quero que eles fiquem cheirando cola não. Acho uma profissão que não é para eles, é para quem gosta mesmo”, explica.

“É um serviço um pouco difícil, porque, às vezes, a pessoa não sabe fazer, fica mal feito e o cliente acha ruim. E tem cliente que acaba sendo ignorante. Mas eu lido com a maior delicadeza, como faço com todo mundo. Mas já chegou um momento que também precisei ser ignorante e bati de frente com o cliente, porque não ficou me humilhando e eu não fiquei calado”, lembra.

Na oficina de Seu Raimundo, a parede exibe a quantidade de trabalhos finalizados. Alguns, esquecidos pelos clientes. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

Adversidades

O trabalho incessante com a restauração dos sapatos e a necessidade de passar o dia sentado na costura, colagem e finalização dos calçados, com poucas horas do dia para o descanso e até mesmo para comer, foram pontos cruciais que fizeram Seu Raimundo pensar em desistir. Segundo ele, o acúmulo de serviço e a falta de repouso levaram ele a ter estresse e ficar fadigado.

“Teve situações que me fez pensar até em desistir. Às vezes, eu me sinto cansado. Um cansaço físico e até no trabalho eu fico estressado, às vezes que me dá vontade de desistir e ir embora para casa, porque é muita coisa só para uma pessoa. Você pega um serviço atrás do outro. Pego muitos trabalhos, você pode ver como estou rodeado de calçados. Tem hora que não conseguimos nem andar direito com o tanto de coisa. Isso aqui tudo sou eu que faço, os dois rapazes apenas costuram. Tiro em média R$ 2 mil a R$ 2,2 mil por mês com isso. Não é o suficiente, pelo volume de trabalho, mas vamos levando”, relatou.

Com olhar preciso, Seu Raimundo trabalha envolto de calçados e ferramentas (Vídeo: Ricardo Oliveira/Cenarium)

‘Sou feliz porque tenho Jesus’

Proprietário da sapataria “Sou feliz porque tenho Jesus”, considerada uma das mais famosas de Manaus, Jonassis de Lima, de 55 anos, trabalha há 26 anos no mesmo ponto, na Avenida Constantinopla, no conjunto Campos Elísios, no bairro Planalto, na zona Centro-Oeste. À REVISTA CENARIUM, ele fala ser artesão de calçados e sapateiro, pois atua com o processo de criação e reformulação de sapatos, sandálias, tamancos, botas, tênis e chinelos.

“Eu trabalhava com construção civil, porém chegou um tempo que eu fiz uma viagem, me afastei da cidade e quando voltei, já não tinha mais espaço na área, porque as pessoas tinham outros profissionais e eu não era contratado. Então, meu irmão me convenceu a abrir uma sapataria e eu fiz, mesmo sem conhecer nada, somente pedindo ensinamento a Deus. O Senhor me ensinou e hoje sou reconhecido como um dos melhores sapateiros do Amazonas e esperamos continuar”, conta Jonassis.

Jonassis, ao centro, ao lado dos filhos Wemesson (à esq) e Glidson Nascimento de Lima. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

A profissão na família de Jonassis também é seguida pelos filhos Glidson, Wemesson e Jonassis Nascimento de Lima, este último tem o mesmo nome do pai. Junto a eles, o artesão de calçados mora no bairro Cidade Nova, na zona Norte de Manaus, e faz um percurso diário de pouco mais de uma hora para chegar ao quiosque onde trabalham.

Assim como Seu Raimundo, Jonassis tirou do trabalho diário com a sapataria o sustento da família e conseguiu dar uma criação digna aos filhos. Para ele, o caminho da humildade e do ensinamento da palavra de Deus foram e são fundamentais para o crescimento de seus herdeiros. Sem isso, afirma, nada pode ser construído.

O quiosque de Jonassis (Ricardo Oliveira/Cenarium)

“Só tenho a agradecer a Jesus por essa oportunidade que Ele nos deu para ganhar o sustento. Mesmo a gente podendo ter outros meios para ganhar, foi esse que Jesus nos deu e estamos honrando isso, fazendo o nosso melhor para poder sermos abençoados e os clientes saírem satisfeitos”, salientou Jonassis.

Rotina

A rotina da família Lima começa pouco depois das 6h. Por conta da distância de casa para o trabalho, Jonassis e os filhos precisam sair cedo de casa para não chegar muito tarde à sapataria. Quando chega ao quiosque, por volta das 8h30, o artesão de calçados conta que a primeira coisa que faz é fazer uma oração para agradecer pelo dia e pedir livramento. Ele acredita que, por conta de sua religião e da crença em Jesus, nunca sofreu com assalto ao seu estabelecimento por isso.

O trabalho de colagem de calçados. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

O quiosque funciona de terça a sexta-feira, nos horários de 8h30 até as 17h. Aos sábados, o horário muda para 8h30 até 13h. Para não ficar no prejuízo, a sapataria trabalha com o formato de serviço onde o cliente precisa pagar 50% de entrada e a outra porcentagem quando o produto for entregue. Essa forma de cobrança é comum entre trabalhadores que atuam como autônomos.

Jonassis Nascimento de Lima, de 32 anos, é o filho mais velho de Jonassis. (Arquivo Pessoal/ Reprodução)

Atualmente, quem toma conta da sapataria são os filhos, mas Jonassis segue trabalhando com eles. No estabelecimento, os anos e anos sentado fizeram o sapateiro fazer a escolha de exercer seu expediente somente em pé. Ao todo, são quase dez horas ininterruptas levantado, descansando apenas poucos minutos para o almoço.

“Conforme vai chegando a idade, a pessoa vai ficando sentada e a coluna doendo. Aqui em pé eu não sinto dor nenhuma. Passo o dia todo em pé. Até na hora do almoço eu como em pé”, contou, exibindo as panturrilhas, em tom de brincadeira.

Recompensados

À CENARIUM, Jonassis lembra que, por muitos anos, andou de ônibus e que, a partir dos esforços da família com a sapataria, eles foram recompensados com a compra de um carro. A casa onde eles vivem também foi construída com o dinheiro dos calçados. Quando questionado se ele acredita que os jovens estão perdendo o gosto pela profissão, o artesão foi enfático: “estão perdendo o gosto pelo trabalho”.

“Não querem trabalhar. Não é porque perderam o gosto pela profissão, é porque eles preferem usar drogas do que trabalhar. Uns preferem ser chamados de maconheiro do que de sapateiro. Eles dizem que sapateiro é uma profissão humilhante, que não é boa. Mas quanto aos antigos, ninguém tem preconceito. Acho que os pais devem ensinar aos filhos o caminho para vencer, porque o caminho para vencer é o caminho da liberdade, sinceridade e do amor. A família que não tem amor, não tem Deus. E a família que não tem Deus, as drogas entram”, desabafou.

O trabalho de sapateiro também é visto como um artesanato na arte de calçados. (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

Para os filhos de Jonassis, por outro lado, o gosto pelo trabalho começou ainda na adolescência e partiu da própria vontade dos rapazes. Glidson de Lima conta que, quando criança, observava o pai trabalhando e ia aprendendo sobre o serviço diário dele. Somente aos 18 anos, lembra, Glidson começou a exercer frequentemente a profissão de sapateiro.

“Fui olhando e aprendendo. Conforme ele ia deixando eu praticar, costumar, fui aprendendo. Aos 18 anos, passei a vir diariamente trabalhar e estou até hoje. Enxergo a sapataria como uma boa profissão. Basta a pessoa trabalhar direitinho, honestamente, sem enganar o cliente e falar a verdade. Assim, nem o cliente tem prejuízo, nem a gente”, descreveu Glidson.

Orgulhoso, o rapaz fala do homem batalhador que é o pai. “É um homem batalhador, de raça. Não procura desistir e nem procura reclamar das coisas. Com ele, trabalhamos todos os dias. Às vezes, mais de dez horas. É um trabalho cansativo, mas digno”, declarou.

Trabalho informal

O trabalho informal no Brasil é uma das alternativas de brasileiros que, na maioria dos casos, acabam não encontrando oportunidade no mercado de trabalho. De acordo com dados de dezembro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País tem 12,9 milhões de pessoas desocupadas. Já a taxa de informalidade foi de 40,7% da população ocupada, ou seja, 38,2 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.

Na comparação com o trimestre encerrado em outubro de 2020, quando eram 14,6 milhões de desocupados, o número de pessoas desocupadas caiu 11,3%, menos 1,7 milhão de pessoas. Segundo o IBGE, a redução do desemprego foi causado pela expansão da contratação nos setores de Comércio, Indústria e Serviços.

Veja também: Comércio, Indústria e Serviços contribuem para redução do desemprego no Brasil

Sobre a informalidade, no trimestre anterior, a taxa havia sido 40,2% e, no mesmo trimestre de 2020, 38,4%. Para a coordenadora de Trabalho e Rendimento do IBGE, Adriana Beringuy, embora se mantenha o predomínio da informalidade, as atividades que contratam trabalhadores, por meio da carteira de trabalho, também têm apresentado expansão.

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