Relatório aponta que Brasil ainda é o País onde pessoas trans mais morrem no mundo

A bandeira azul e rosa é símbolo da luta pela visibilidade trans (Reprodução/Internet)
Adriã Galvão – Da Revista Cenarium

BOA VISTA (RR) – O relatório anual divulgado nesta segunda-feira, 29, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) aponta que, pelo 15° ano, o Brasil continua sendo o País que mais mata pessoas trans no mundo. O ranking elaborado pela ONG Transgender Europe, que monitora homicídios de pessoas trans em 171 nações do planeta, também revela que a América Latina e o Caribe reúnem 73% dos assassinatos.

Os dados mostram que, no Brasil, 145 pessoas trans foram assassinadas em 2023, sendo 136 contra travestis e mulheres trans/transexuais e nove contra homens trans e pessoas transmasculinas. Um aumento de 10,7% em relação a 2022, quando foram registrados 131 casos. O perfil das vítimas ainda é o mesmo dos últimos anos: 94% são mulheres trans/travestis, pretas ou pardas, 72% tinham entre 18 e 29 anos e 54% foram mortas com requintes de crueldade. 

Assassinatos de pessoas trans mês a mês (Reprodução/Antra)

“A partir desses dados, podemos concluir que uma pessoa transfeminina (travesti ou mulher trans) tem até 32 vezes mais chances de ser assassinada, sobretudo no espaço público, que uma pessoa transmasculina ou não binária, considerando, assim, que a sua identidade de gênero e os estigmas em torno das travestilidades representam fatores de alto risco”, diz o relatório.

PUBLICIDADE

O Estado de São Paulo voltou a ocupar o primeiro lugar no ranking de assassinatos de pessoas trans no Brasil. Foram 19 casos registrados. Na segunda posição, está o Rio de Janeiro, que dobrou o número de mortes para 16. O Ceará ocupa o terceiro lugar, com 12 registros. O relatório ressalta, ainda, que 65% das mortes ocorreram em cidades do interior dos Estados. Entre os casos passíveis de identificação do local do crime, 60% foram em locais públicos.

Mobilização em celebração ao Dia da Visibilidade Trans, em 2023 (Reprodução/Agência Brasil)

A Região Norte do País concentra 9% dos assassinatos. O Estado do Amazonas ocupa o primeiro lugar do ranking regional, com sete casos registrados em 2023. Segundo a Antra, o número de assassinatos pode ser muito maior, porém, a ausência de dados oficiais registrados por órgãos competentes, como delegacias, Institutos Médicos Legais (IML) e secretarias de segurança pública, em todo o Brasil, impede a notificação da violência contra a população trans.

“Dados sobre essas violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é reportado pelos canais de notícias. A subnotificação é significativa, levando em consideração que, se uma determinada notícia foi veiculada pela imprensa, espera-se que esses casos estejam devidamente registrados em fontes de dados de órgãos competentes”, destaca a Antra no dossiê.

Marsha Trans 2024, em Brasília, 28 de janeiro (Reprodução/Agência Brasil)
Pornografia

Ao mesmo tempo em que ocupa o primeiro lugar no ranking de assassinatos, desde 2016, o Brasil segue campeão invicto no consumo de pornografia trans nas plataformas internacionais de conteúdo adulto. Anualmente, os maiores sites pornôs do mundo publicam um relatório com as categorias mais acessadas por usuários, detalhando palavras-chave, celebridades, fetiches e tendências mais buscadas em cada País do top 20.

Buscas por termos como shemale, transgender, brazilian shemale e ladyboy aparecem na liderança dessas plataformas em todos os países. No Brasil, alguns vídeos chegam a mais de 1 milhão de visualizações no RedTube, 20 milhões no PornHub e outros quase 50 milhões no XVideos, com buscas pelos termos travesti e travesti brasileira.

Uma análise do público também revela que mulheres cis viram pornografia trans 175% vezes mais que os homens cis em 2023. Os dados da pesquisa, divulgada no dia em que a Visibilidade Trans completa 20 anos, no Brasil, escancaram o paradoxo da população brasileira entre o desejo e o ódio por pessoas travestis e transexuais.

O grupo “baby boomers”, como são chamados os principais agentes antitrans e conservadores, pesquisou pornografia trans 58% mais vezes em 2023, se comparado ao ano anterior. As pesquisas mais populares no Brasil incluíram “surpresa transgênero” (transgender surprise), que teve aumento de 490%, recorde entre todos os países do mundo.

“Historicamente, os corpos trans têm sido, muitas vezes, tratados apenas como objetos, fetiches e/ou fantasias, sem levar em conta nossos próprios desejos ou sentimentos. E isso cria uma situação altamente problemática, onde essas pessoas são desejadas e, ao mesmo tempo, causam repulsa para determinadas pessoas”, citou o dossiê.

Marsha Trans 2024, em Brasília, no domingo, 28 de janeiro (Reprodução/Agência Brasil)
Saúde mental

O relatório da Antra revela, ao menos, dez casos de suicídio entre pessoas trans, sendo um deles uma pessoa não binária, quatro casos entre homens trans/transmasculinos e cinco travestis/mulheres trans. Para a associação, “segue sendo muito difícil monitorar os suicídios, porque em sua grande maioria não são publicados. E alguns, quando publicados, a família não respeita a identidade de gênero e tem o problema da notificação”.

“Constatamos, ainda, que fichas de notificação das unidades de saúde não são preenchidas ou quando são preenchidas, são feitas de forma incorreta. Todavia, reconhece-se que o processo de exclusão social, a marginalização, discriminação e estigmatização que se concretiza no nosso dia a dia podem levar ao suicídio”, destacou o relatório.

O dossiê aponta como principais causas de adoecimento mental dessa população as violências físicas e psicológicas, a exclusão familiar ou permanência em ambientes familiares tóxicos e/ou transfóbicos, o abuso físico ou sexual, o alto índice de rejeição no mercado formal de trabalho, o racismo, o cissexismo, a ausência de esperança, o estresse de minorias, o transtorno de ansiedade generalizada, a depressão, a humilhação e a baixa autoestima.

Em entrevista à REVISTA CENARIUM, uma das fundadoras da Associação de Travestis e Transexuais do Estado de Roraima (Aterr), Rebeca Marinho, desabafa: “Como ter saúde mental no País que mais mata pessoas trans no mundo? Ninguém mantém a mente saudável sem acesso à saúde, sem alimento ou moradia. O atendimento nas Unidades Básicas de Saúde é muito precário. Nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os psicólogos estão sempre de férias e não tem ninguém para substituir”, lembrou.

À CENARIUM, a primeira miss trans do Estado de Roraima, Lilith Cairú,  também revela o pânico e medo desenvolvido desde que se entendeu como pessoa trans.

“O lugar onde estamos vai construir a nossa saúde mental. Como viver saudavelmente em um Estado de extrema direita, conservador e transfóbico? Como mulher trans nascida e criada em Roraima, tenho pânico de sair na rua e até de acontecer alguma violência dentro da minha casa. Sei que posso morrer pelo simples fato de ser trans”, completou.

Diante da insuficiente ação do Estado para proteger a vida e a saúde das pessoas trans, a migrante venezuelana e mulher trans, Karol Fuentes, revela que só está viva porque recorreu aos amigos para formar uma rede de apoio.

“Pessoas LGBTs, praticamente, não têm família. A maioria foi expulsa de casa ou preferiu sair por conta do preconceito. Eu consegui encontrar amigos como eu, que entendem e me defendem, mas não dá para arriscar sozinha na rua”, completou.

‘Sai do armário’

Essa é a primeira edição do Dossiê elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais lançado em um governo que atua sob uma perspectiva progressista. Mas para a Antra, no Brasil, a violência contra pessoas trans permaneceu endêmica, com centenas de vidas perdidas, muitas sem tratamento adequado pelo Estado e por negligência estatal de subnotificação da violência LGBTIfóbica.

No relatório, ressalta que o Governo Lula precisa sair do armário e assegurar, por meio de ações, compromissos, políticas e acenos simbólicos, diante da sociedade, que vidas trans importam, e para que a transfobia deixe de ser uma pauta da extrema direita contra o próprio governo. Além do empenho para aprender sobre os direitos da população trans, pensando na urgência de um letramento sobre diversidade de gênero, de modo a enfrentar de forma qualificada, firme e técnica as falácias antitrans.

“Enquanto o presidente e as demais áreas do governo (e partes da esquerda) seguirem se esquivando de assumir uma posição pública e organizada em defesa dos direitos trans, a direita continuará usando a agenda antitrans para enfraquecer a atuação do governo, seja com fake news ou violência”, destacou o documento.

Veja algumas das recomendações feitas pela Antra ao poder público:
  • Revogar o modelo transfóbico do “novo RG” e implementar um modelo que garanta o respeito e a proteção das pessoas trans;
  • Instituir políticas afirmativas de reservas de vagas e/ou cotas para pessoas trans nas universidades federais, desde a graduação, e no concurso público unificado;
  • Instituir uma mesa de mediação, junto à presidência, a fim de lidar com a situação de violência contra pessoas trans no Brasil;
  •  Revisar os valores das tabelas dos hormônios usados por homens trans e pessoas transmasculinas que passaram por aumento desproporcional;
  • Realização de mutirões nos órgãos do sistema de assistência social, para emissão emergencial e gratuita de documentação, regularização e inclusão no cadastro da rede de assistência e programas sociais para pessoas LGBTQIAPN+, idosas, em situação de rua, população periférica de baixa renda, imigrantes e/ou que morem fora das capitais, em assentamentos de movimentos pelo direito a terra e profissionais do sexo com a finalidade de que possam ser atendidas pelas medidas sócio econômicas.
Leia mais: MPF vai promover roda de conversa sobre visibilidade trans no Pará
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Adriana Gonzaga
PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.