Sequência do DNA de plantas da ayahuasca tem pesquisa realizada pela UFRJ e Unesp

Cipó de ayahuasca encontrado na floresta do Cristalino Lodge, em Mato Grosso (Eduardo Knapp/Folhapress)
Da Revista Cenarium*

SÃO PAULO – Uma sessão de ayahuasca pode desencadear consequências até certo ponto previsíveis, como a conversão de um ateu em crente, ou inesperadas, como o projeto de esmiuçar o DNA das plantas usadas no chá psicodélico. Francisco Prosdocimi conheceu as duas.

Pesquisador especializado em genômica, ciência dedicada a transcrever o alfabeto bioquímico dos cromossomos para identificar genes e suas possíveis funções, até maio de 2016, ele se considerava um cético racionalista e secularista. Estava em Cuzco (Peru) e decidiu tomar ayahuasca, pela primeira vez, com um xamã local.

“Saí dessa cerimônia acreditando em Deus, em entidades, em anjos, em espíritos e em reencarnação”, conta o biólogo do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ, hoje, com 43 anos. “Tive uma conexão muito forte com o mundo espiritual, que até então havia negado e deslegitimado toda a vida.”

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Experiências místicas acontecem, ainda que não com todos os iniciados em substâncias enteógenas. Prosdocimi diz que, nos meses após a experiência peruana, recebeu um chamado espiritual para trabalhar com ayahuasca em sua especialidade, a soletração de genomas (já havia participado do sequenciamento de vários outros organismos, como uma espécie de papagaio e outras aves).

O projeto deu seu primeiro fruto em outubro passado, com a publicação das sequências de DNA de estruturas do arbusto chacrona (Psychotria viridis), um dos ingredientes essenciais da ayahuasca. O outro é o cipó-mariri, ou jagube (Banisteriopsis caapi).

As estruturas sequenciadas, no caso, foram duas organelas celulares: a mitocôndria (central energética da célula) e o cloroplasto (onde se dá a fotossíntese) da chacrona. Elas têm seus próprios genomas, bem menores e mais fáceis de soletrar que os vários cromossomos presentes nos núcleos das células.

Os genomas das plantas estão quase prontos. A dupla aguarda, agora, decisão sobre um financiamento de R$ 300 mil submetido à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para completar o trabalho. O pedido foi feito por Alessandro Varani, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, em Jaboticabal, parceiro de Prosdocimi na empreitada.

Com essa verba, a dupla espera repetir alguns sequenciamentos para preencher lacunas nos “bons rascunhos” que já têm em mãos, segundo Varani. Com as sequências finalizadas e análises completas, devem apresentar, até o final do ano, um ou dois artigos para publicação em revistas científicas.

O plano é seguir o padrão “platinum” da genômica atual, como o exigido em periódicos de primeira linha: sequenciamento e mapeamento definitivos de cada cromossomo, um por um, sem embaralhamento das sentenças (genes) que, num livro, estariam localizadas em capítulos específicos (cromossomos).

Feito isso, Prosdocimi espera encontrar pistas, pelo menos, das proteínas responsáveis pelas vias bioquímicas de produção da dimetiltriptamina (DMT), na chacrona, e dos alcaloides do mariri, como harmina e harmalina. Considera-se que a DMT seja a responsável pelo efeito psicoativo (alteração da consciência), que depende também dos alcaloides do cipó.

Folhas da chacrona (Psychotria viridis), um dos ingredientes com que se prepara a ayahuasca (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Esses compostos do mariri, conhecidos como betacarbolinas, inibem as enzimas capazes de degradar a DMT, o que a impediria de exercer efeito mais significativo no cérebro. Até hoje, é um mistério, como surgiu na Amazônia a tecnologia de combinar as propriedades dos dois vegetais para preparar a ayahuasca, usada em rituais por vários povos indígenas do Brasil, Peru, Colômbia e Equador.

O grupo de Dráulio de Araújo, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), investiga o efeito antidepressivo do chá ayahuasca (ou daime) e da DMT. Prosdocimi, Varani e Araújo estudam uma parceria para sequenciar outra planta produtora de DMT, a jurema-preta (Mimosa tenuiflora).

Prosdocimi não está em busca de medicamentos ou terapias farmacológicas, embora não critique quem se dedica a desenvolver pílulas de ayahuasca. “Meu intuito com o projeto é louvar as plantas sagradas e agradecer a elas pelas curas que me trouxeram”, diz.

“A ayahuasca deveria ser usada em contexto religioso com a guia de um xamã ou pajé. Com cantos, danças e rezas, a experiência de cura é muito mais profunda e efetiva. Essa é uma tradição milenar dos índios amazônicos. Nada vai se comparar ao poder de cura da cerimônia feita com um líder espiritual em solo sagrado indígena.”

Sua ideia com o projeto é começar um tipo de síntese da ciência com a espiritualidade. “Acredito que o conhecimento, a ciência básica, é importante, e que isso pode vir a esclarecer melhor a forma como a cura da ayahuasca acontece na visão científica”.

Para o pesquisador da UFRJ, a ayahuasca proporciona o que chama de efeito nootrópico, um aumento da cognição e dos sentidos – audição, tato, olfato e visão, além de propriocepção, self, capacidade de relacionar ideias e conceitos, criatividade, etc. Esse aumento das capacidades cognitivas permitiria ver regularidades que, de fato, existem, em seu modo de entender, e não alucinações, mas que escapam à cognição ordinária.

Não por acaso, as amostras das plantas usadas no sequenciamento foram obtidas por meio de uma colaboração com a União do Vegetal (UDV), religião que emprega o chá psicodélico – chamado por seus praticantes de hoasca – como sacramento. A UDV mantém um departamento científico e apoiou várias pesquisas com a beberagem e quem a toma desde os anos 1990, pelo menos.

Os vegetais foram coletados na serra da Cantareira, no núcleo Menino Galante da UDV, em Mairiporã, SP, (por coincidência, local onde este blogueiro tomou o chá pela segunda vez, como está narrado no livro “Psiconautas”). Seguiu-se um protocolo internacional que exige congelamento imediato das amostras, a -80°C, para preservar o DNA e, assim, melhorar a qualidade dos dados do sequenciamento.

As amostras foram enviadas para processamento na Universidade do Arizona, que tem larga experiência com genomas vegetais e com a qual Varani colabora há anos. Ele esclarece que o material é todo destruído após o sequenciamento, como determina a legislação brasileira sobre patrimônio genético.

A análise do genoma da chacrona está demorando mais porque é bem maior do que se esperava, conta o pesquisador da Unesp. O projeto previa 2 bilhões de bases (“letras”), mas são, na realidade, 4,48 bilhões – uma vez e meia o tamanho do genoma humano, que consumiu uma década para ser transcrito e publicado em 2001 (as técnicas de sequenciamento, hoje, são muito mais rápidas que há três décadas).

Uma hipótese para explicar o dado espantoso prediz que a chacrona, um parente do cafeeiro, seja um híbrido de duas espécies vegetais próximas que tiveram o genoma duplicado, o que o tornou incompatível com as espécies parentais. Um alotetraploide, como se diz no jargão da área.

Além de, eventualmente, indicar as vias metabólicas que produzem a DMT na chacrona, o sequenciamento poderá esclarecer um outro enigma no caso do mariri. Existem variedades do cipó, chamados de morfotipos, como o caupuri e o tucunacá, mas Varani acha que a análise dos respectivos genomas, como estão fazendo, poderá indicar que se trata de espécies diferentes.

“Será um estudo data-driven. Faremos aquilo que os próprios dados nos guiarem”, ressalva Prosdocimi. “Não quero prometer nada porque sabemos que muitas promessas do genoma não se concretizam.”

O pesquisador não se diz preocupado com a possibilidade de que outros laboratórios ou empresas se valham da informação genômica da chacrona e do cipó para desenvolver fármacos à revelia dos povos indígenas que legaram tal conhecimento à biomedicina. Na sua avaliação, quando qualquer tecnologia é criada surge a possibilidade de que seja mal utilizada, mas isso não deveria frear algo que vem para esclarecer, iluminar, entender.

Prosdocimi se declara a favor da repartição com povos originários, de eventuais ganhos, a partir desse saber tradicional, como previsto no Protocolo de Nagoya. “Só que é preciso a intermediação do Estado para esclarecer como seria essa partilha. Me parece que a ayahuasca é um conhecimento tradicional difuso, que surgiu diversas vezes, independentemente.”

Além de Prosdocimi e Varani, trabalham no projeto Simone Santos, da Universidade do Estado da Paraíba (UEPB); José Beethoven Barbosa, da UFRR; Vitor Miranda e Saura Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp); e Danilo Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Todos foram ao Menino Galante, em setembro de 2021, para a coleta, e trabalharam nos genomas das organelas.

“Vamos, pouco a pouco, com muita humildade e respeito, trabalhando com responsabilidade e dedicação para louvarmos as plantas professoras e conhecermos mais sobre seus segredos moleculares”, afirma Prosdocimi.

(*) Com informações da Folhapress
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